sábado, 20 de junho de 2020

Esquecimento



Há meses, ou, quem sabe, até anos que eu quero escrever um texto sobre esquecimento aqui no blog, mas eu sempre... esqueço. Parece até piada, mas isso me assusta. Quando era criança, eu pensava no esquecimento como um poço sem fundo para onde as memórias – uns brinquedinhos pululantes – inexoravelmente rumavam e eu, sisificamente, tratava de reaproximá-las, mas elas eram cada vez mais numerosas e eu, com apenas dois braços curtos, não dava conta de aninhá-las todas perto de mim. Com o tempo, acostumei-me a simplesmente vê-las despencarem da beirada e entendi que isso, no fim das contas, não é necessariamente ruim. Lembrar de tudo deve ser um fardo inimaginável (a menos que você tenha hipertimesia, porque aí é imaginável, mas não sei se deixa de ser um fardo).

O que continua a me irritar no esquecimento, todavia, é o fato de que não temos praticamente controle algum sobre ele. Não controlamos do que lembramos, ou do que esquecemos, e isso nos torna agentes passivos nessa história. Se pensarmos bem, o esquecimento nos molda. Molda tanto que a discussão em torno do livre arbítrio se torna irrelevante. De que adianta pensar que você toma as decisões se depois você nem se lembra disso? Ah, mas o esquecimento é o outro lado de uma moeda cuja cara é a lembrança. Com o mesmo efeito, poderíamos dizer que somos quem ativamente nos esforçamos para lembrarmos que somos. Será?

É impossível falar de esquecimento sem falar de memória, a qual, como George Orwell notou brilhantemente em seu livro 1984 – ninguém armazena, é intangível, logo, ela pode ser controlada, manipulada, reinventada. Podemos pensar na memória como um monólito a ser esculpido e a goiva é o esquecimento. Octavio Paz dizia que ao falarmos, deixamos de falar infinitas coisas, ou seja, falar é muito mais um ato de não falar. Ao lembrarmo-nos de algo, esquecemos de uma infinidade de coisas; o que não queremos esquecer se torna importante e todo o resto automaticamente deixa de sê-lo. Lembrar é muito mais o ato de esquecer.

Algo particularmente frustrante é o fato de que eu gostaria muito de me lembrar das coisas que aprendi na escola – física, química, matemática, principalmente – e esquecer dos conflitos com os coleguinhas, das decepções, das frivolidades. Se eu pudesse controlar o que esquecer e o que lembrar, eu certamente seria outra pessoa, um devir incógnito. Contudo, este eu que vos fala é o resultado de todas essas experiências que involuntariamente esqueci e que ainda lembro. Eu sou esse bloco esculpido pelo esquecimento. Sou formado pelas lembranças que não escolhi ter – sou grato, entretanto, por ter muitas delas.

Um questionamento que talvez tenha servido de ponto de partida para este texto surgiu alguns anos atrás (para variar, esqueci de quando exatamente), durante a elaboração do meu primeiro romance, URSS 2.0, onde uma personagem pondera sobre a etnogênese: 

(...) infelizmente, a melhor decisão que um povo podia ter ao avistar desconhecidos era a de massacrá-los impiedosamente. Se os nenets que tiveram contato com os eslavos pela primeira vez tivessem feito isso, talvez a história tivesse sido outra. Da mesma forma, a colonização da América pelos europeus não teria acontecido se os indígenas não os tivessem recebido de braços abertos. (...) “Mas a história do mundo é escrita com sangue” – pensava Petro. “É assim que surgem os povos. Eles não brotam do nada, mas sim, como frutos do embate de outros povos precursores.”

Tal como ocorre com indivíduos, a formação de um povo se dá pela memória e, consequentemente, esquecimento. Diz-se autóctone o povo que já não se lembra objetivamente de como surgiu ali, cuja memória está paradoxalmente alicerçada em tempos imemoriais; outros, mais recentes, meticulosamente reorganizam e documentam uma memória que legitime seus discursos dominantes, escolhendo o que lembrar e o que esquecer, via de regra, em detrimento dos primeiros. A historiografia, no nosso caso, lusófona, nos fala de descobrimento, de colonização, esquecendo de propósito o genocídio, a escravidão, a violência, o roubo. Sabemos que tudo isso ocorreu e reverbera ensurdecedoramente, mas a memória coletiva, moldada pelo esquecimento, parece priorizar as futilidades do recreio. Se nós pudéssemos escolher o que lembrar e o que esquecer enquanto povo, talvez pudéssemos nascer como nação. Essa nação-devir, incógnita por definição, certamente não se chamaria Brasil, pois lembraríamos e cobraríamos justiça por tudo aquilo que a própria existência do Brasil implica em esquecer e buscaríamos nos esquecer de tudo aquilo que o Brasil implica em nos lembrar.  

Ironicamente, empenhar-se em esquecer é uma corrida para lugar nenhum. “Eu bebo para esquecer... nem me lembro mais do quê”, já dizia o poeta ébrio, o que pode ter servido de inspiração para esse texto – eu já não me lembro, mas a essa altura, acredito que esteja claro que minha escrita foi moldada pelo esquecimento, e isso só comprova a minha tese. Parece-me que a discussão sobre lembrarmo-nos para que a história não se repita há muito já foi decidida e é por isso que História é uma matéria obrigatória. Não é disso que quero tratar aqui. Esquecer-se de propósito é um curto-circuito, uma pequena viagem no tempo, na qual viajar ao passado para mudar o futuro impossibilita a própria viagem, uma vez que seu motivo inerentemente desaparece. Será por isso que não podemos escolher o que esquecer? Será que, na verdade, podemos e, de fato, esquecemos aquilo que tanto queríamos esquecer e, consequentemente, nos esquecemos disso? 

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