quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Consciência temporal

O Século XX foi um período de enormes transformações no cenário mundial. Num período de 100 anos muita coisa mudou. Mas e antigamente, como na pré-história, por exemplo? 100 anos para os povos da idade da pedra não representariam nem um dia de avanços tecnológicos para a sociedade globalizada de hoje, ainda que as medidas de tempo sejam as mesmas. Veja os povos da chamada América pré-Colombiana. A grande maioria dos seus indivíduos viveu e morreu antes de terem tido qualquer tipo de contato com o resto do mundo. Qual seria o conceito de mundo para esses indivíduos? Aqueles astecas que não viveram até a chegada dos espanhóis provavelmente nunca imaginariam a catástrofe que iria acontecer. Esses mundos temporais gerados no consciente coletivo até a hora da morte encerrando-se aí o conceito de nacionalidade histórica, como um asteca do século XIV e um mexicano atual. Mesmo sendo do mesmíssimo lugar, ambos os indivíduos são tão estrangeiros entre si quanto se tivessem nascido em lados opostos do globo.


Todo o conceito de identidade que temos é composto por um período histórico que pode mudar com o passar do tempo. Assim, nada é real, como hoje afirmo que o Brasil é a minha pátria, o mesmo não existia há alguns séculos atrás, e nada garante que ele exista num futuro distante. Tudo o que escrevo aqui poderá ser ininteligível ou mesmo inverossímil num futuro indeterminado.


A fonte dessa relatividade, em que tudo é incerto e temporal é que tudo vem da mesma origem, somos um ciclo de intermináveis transformações que vem da matéria que forma este plano de existência. A vida consiste em transformar pó em carne, carne em pensamentos, pensamentos que perscrutam a própria carne, o pó e a vida. A matéria que constitui tudo neste planeta pode ser transformada em qualquer coisa, e é nisso que gastamos toda nossa vida pesquisando e interagindo, transformando matéria em alguma coisa que nos convém. Há um pouco de cada coisa que me manteve e mantém vivo até hoje nestas letras, querendo ou não. A matéria é tão relativa que pode ser simplesmente qualquer coisa, e nós como tolos achamos que podemos controlá-la, escolhendo nomes, definindo-a em verbetes, classificando-a e delimitando-a como se houvesse algo além dela. Neste plano de existência a matéria por mais diversa que pareça é igualmente instável e relativa, sempre em transformação.


A morte é o epílogo da interpretação que fizemos deste mundo.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Fluência - Pt. 3

2. Várias formas de se dizer a mesma coisa

Com o aprendizado de vários idiomas percebi uma estratégia interna que todos nós usamos ainda que sem perceber, mesmo em nossas línguas maternas, e que faz parte do desenvolvimento das habilidades lingüísticas de estudantes de língua estrangeira, a de usar de diversos caminhos para se dizer a mesma coisa. No caso de um falante de língua estrangeira que não se lembre ou desconheça um termo ou uma expressão naquele idioma, se ele tiver uma boa fluência, aliada a um bom vocabulário, ele certamente achará uma maneira de dizer aquilo que deseja, exemplo: ao desconhecer a palavra “sereia”, mas conhecendo palavras equivalentes a “mistura”, “mulher”, “peixe”, etc, o falante será bem sucedido em entregar sua mensagem “mistura de mulher com peixe”, a qual será facilmente entendida pelo receptor. Quanto maior o léxico do estudante, mais formas ele encontrará de dizer o que quer e menos esforço ele terá de fazer para isso, até porque, se ele alcança um vocabulário cada vez maior isso se deve a um contato crescente com o idioma. Na verdade, isso funciona da mesma forma com falantes nativos. O fato é que o nativo tem o léxico tão abrangente que dificilmente tem dificuldades de achar meios de dizer o que pensa, e por estar sempre o usando, acha as palavras mais facilmente. O falante não-nativo tem dificuldade em ambas as coisas, contudo, quando este consegue achar ao menos uma forma de dizer cada coisa que pensa, nas mais variadas situações, pode-se dizer que este alcançou a fluência, se devidamente munido de conhecimentos gramaticais, ortográficos, fonéticos adequados.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Fluência - Pt. 2

1.2. Fluência mental


Ainda abordando a tese sobre fluência, mas já no campo mental e não mais verbal, constatei tão logo que atingi a fluência do inglês que na verdade a fluência primeiro vem na mente para depois se estender à fala. O estudante, nos seus primeiros passos, atrela muito a língua que aprende à sua língua materna, ou outra de grande proficiência, de maneira que ao tentar se comunicar naquela língua, é comum ocorrer uma breve (às vezes nem tanto) tradução mental, onde o pensamento (o que se quer dizer) vem na língua materna para depois ser traduzido para a língua em questão e em seguida ser exteriorizado. Quanto mais rápido é esse processo, mais próximo da fluência o estudante se encontra, até chegar um ponto em que o cérebro já foi tão exposto e já tem um conhecimento tão amplo da língua que ele já consegue converter seus pensamentos naquela linguagem e automaticamente exteriorizá-la; é quando o cérebro adquire uma outra linguagem que então podemos falar fluentemente. É importante notar a relação entre a carga lexical a qual o cérebro deve receber para chegar a tal ponto e o léxico do próprio falante, ou seja, o falante fluente nasce quando seu cérebro já foi suficientemente “bombardeado” por aquele idioma, proporcionando-lhe assim material suficiente para se expressar sem ajuda da língua primária.


Há um ditado que afirma que quanto mais línguas se sabe, mais facilmente se aprende outras. Ao chegar à fluência de outras línguas, como espanhol e italiano, cheguei a essa mesma conclusão. O mecanismo desenvolvido pelo meu cérebro anteriormente com a experiência da língua Inglesa parece ter ampliado a minha capacidade de pensar em outros idiomas, ou seja, o cérebro adquiria mais facilmente outras linguagens valendo-se da mesma plataforma construída pela língua Inglesa. É certo que a proximidade das línguas latinas à minha língua vernácula foi um acelerador deste processo, mas o mesmo pude notar com idiomas diversos com os quais tive algum contato a nível de aprendizado, como norueguês por exemplo. Antes, quando meu cérebro só entendia português, tudo que eu enxergava ou escutava em línguas estrangeiras era passado por uma espécie de triagem, onde eu refletia se já havia visto aquela palavra antes, e se eu sabia o seu significado, traduzindo-a, se possível. Também acontecia de, ao não poder traduzir a palavra, meu cérebro aproximá-la da palavra mais próxima possível na minha mente, o que é muito comum principalmente com línguas latinas, são os chamados “cognatos/falsos amigos”, onde por desconhecermos o termo, o processamos com o que mais se aproxima. Atualmente, ao ver termos conhecidos mesmo que nas mais diversas línguas eu posso compreendê-los instantaneamente, como se fossem parte de um amplo vocabulário na minha mente.


Isso tem se intensificado cada vez mais, com o passar do tempo. Percebo que é como se minha mente agora não tivesse mais uma linguagem primária ou secundária, mas uma única linguagem que abrange todos os signos grafofonológicos na minha mente. Mais do que isso, é como se agora eu só compreendesse uma língua, e me expressasse em cinco (Português, Inglês, Espanhol, Italiano e Francês) além de termos soltos de diversas línguas com as quais já tive algum contato (Russo, Latim, Norueguês, Polonês, Romeno, Mandarim, Árabe, Sânscrito, Nahuatl, Quéchua, Alemão, Japonês, Urdu, etc). Assim como acontece com nossa língua vernácula, acontece de esquecermos uma ou outra palavra, confundir significados, etc, e isso também se aplica a esse mega vocabulário gerado em minha mente, com verbetes das mais diversas origens. Os termos de uso mais corrente e de vocabulário mais abrangente são os mais facilmente lembrados (1º - Português, 2º - Inglês...), o que ainda gera uma tênue divisão baseada na “etimologia” dos verbetes.


Esse processo mental de fluência, no meu caso, foi marcante em determinadas situações que me deram um vislumbre mais preciso de como isso funciona: para cada língua que aprendi, houve uma ocasião em que eu involuntariamente só conseguia pensar no idioma que eu estava aprendendo, ou seja, meus pensamentos surgiam na língua que eu aprendia na época, e por mais que eu tentasse, não conseguia pensar em outra língua, sequer a Portuguesa. À parte de ser uma experiência bizarra e de certa forma constrangedora, pois eu me sentia incapaz de comunicar-me na minha própria língua, foi algo extremamente interessante e até hoje inexplicável. Como é difícil chegar à conclusão de quando se adquire a fluência de uma língua, elegi essas ocasiões para tal, ainda que de forma simbólica, pois foram as ocasiões nas quais pela primeira vez “pude” (involuntariamente) coordenar todos os meus pensamentos nas línguas em questão.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Fluência - Pt. 1

Algumas conclusões às quais cheguei aprendendo idiomas:


1. O Conceito de Fluência.

Antigamente eu achava que falar fluente era o mesmo que falar como um nativo, o que não é bem verdade. O fato é que o falante nativo se identifica patrioticamente com determinado local, partilhando assim de sua história, cultura e tradições. Um exemplo disso é a diversidade de certas línguas como o português, onde dois falantes nativos, um brasileiro e um português desconheceriam muitas das particularidades culturais do país de cada um, como o nome de um personagem de determinado programa de TV, ou o nome de determinado prato típico, por exemplo. Dessa forma, num âmbito mais específico, mesmo falantes nativos divergem e ignoram aspectos culturais e históricos do outro, chegando mesmo a impedir a comunicação plena entre ambos. Ainda sobre essa questão, pode-se observar num mesmo país, numa determinada sociedade, como a brasileira, diferentes níveis de conhecimento lingüístico, mesmo entre falantes nativos conterrâneos, como comparar um bóia-fria que nunca pôde ir à escola nem teve quem o instruísse, e um doutor em letras vernáculas pela melhor universidade do gênero no país. Ambos são nativos, mas fica claro que a bagagem lingüística e literária do outro, principalmente nos aspectos da norma culta seria muito mais evoluída que a do primeiro.

Ao chegar à fluência da língua inglesa, primeira língua estrangeira que aprendi, descobri que na verdade fluência era mais simples do que eu pensava; como o próprio nome diz, é quando a fala “flui”, sustentando uma comunicação bem-sucedida no idioma em questão, sem prender-se demasiadamente a questões como pronúncia, norma culta e escrita; assim, o que mais é importante para se chegar a uma boa fluência num idioma é ter um bom vocabulário para assim poder expressar-se e compreender, ter bons conhecimentos da gramática para saber como coordenar esse volume de vocábulos, ter uma pronúncia clara ainda que com sotaque, além de uma boa audição para poder compreender o que se escuta, o que exige muito treinamento e exposição ao idioma em questão. Isto é claro sem mencionar a parte escrita, o que também exige muito treinamento e conhecimentos de ortografia apurados, uma boa escrita e um hábito de leitura corrente também são fundamentais.

O que quero dizer é que a fluência depende do ritmo que leva uma conversação em diversos tipos de situações em dado idioma. Se duas pessoas conseguem estabelecer comunicação verbal sem problemas, com fluência na fala e audição, elas são fluentes, ainda que não nativas. Como afirmei acima, o nativo além de comunicar-se fluentemente identifica-se a um local ou comunidade específica, conhecendo então peculiaridades inerentes àquela esfera em que vive. O estudante dificilmente chega a este nível apenas com o estudo à distância, necessitando então de uma vivência num local onde o idioma em questão seja falado correntemente. Para encerrar, gostaria de citar uma frase de uma amiga minha italiana: “Solo impari una lingua vivendola” (Só se aprende uma língua vivenciando-a).

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Vacilou cai

A Capoeira tem um inigualável poder de propagação da cultura brasileira, e isso muito se deve às canções que acompanham as rodas. Já conheci muitos estrangeiros que praticam-na e que através de suas canções aprenderam suas primeiras palavras na nossa língua. Mas, além disso, as músicas de capoeira - bem como a vivência de praticá-la e aprender sua beleza - trazem muitas lições filosóficas, que podem sabiamente ser levadas para o resto da vida, não só aplicáveis na capoeira como em qualquer outro contexto. Interessante é que a maioria dessas lições vem em pequenos versos, vibrantes em rima e cadência, vindos não de gabinetes e faculdades, mas da rica sabedoria do povo, principalmente dos negros e sua grande e conturbada história em terras tupiniquins.


Cada exemplo a seguir poderia ser acompanhado de uma interpretação, uma verdadeira dissertação, mas deixo a cargo do leitor tirar suas próprias conclusões, afinal, versos de capoeira não vêm com notas de rodapé nem referências bibliográficas.


Respeite o tempo, menino – Mestre Boa Voz


“Tu mal sabe andar,

Já quer correr;

Cuidado, moço

Pro mundo não lhe bater...”



Sina de Mestre – Mestre Martins


“Mas a vida tem dessas coisas,

Não dá pra você entender;

Seu orgulho é formar o aluno,

E o dele é pisar em você.”



Meu orgulho – Professor Eros


“Quem não tem o segredo,

Não pode ensinar.

Tem que ser discípulo

Quem queira a mestre chegar.”



Amor de Capoeira – Mestre Mão Branca


Passar bem ou passar mal

Tudo na vida é um passar.”

...

“Hoje tenho consciência

Daquilo que Deus me deu
Entendi com coerência

Foi ela quem me perdeu.”



Maltas de Capoeira – Wilton Vieira dos Santos


Malandro de branco descia a ladeira

E povo dizia vem o capoeira

Mas isso tudo é passado, hoje melhor posso entender

Mas se eu fosse daquele tempo

Eu Também queria ser

Das maltas de capoeira ô iaiá que lutaram para viver.”



Mestre Gigante – Mestre Mão Branca


“Ensinou-me a ser guerreiro

E o meu medo derrotar

A ser valente mandingueiro

A cair e a levantar

Não desprezar o mais fraco

Nem o mais forte rebaixar.”



Educação na Capoeira – Mestre Mão Branca


“E vocês que são formados

E dizem que tem educação

Às vezes vocês não vêem

O que eu presto atenção.

Vejo crianças sendo mortas

E jogadas no porão

Pois elas pegam pra comer

O que vocês jogam no chão

Pois a minha educação

Não foi a escola quem me deu

Quem me deu foi a capoeira

Hoje eu agradeço a Deus.”



Maldade existe – Mestre Mão Branca


“Você dizia que fazia cortesia,

Mas não sabia que a maldade existia,

Na meia-lua pode tomar cabeçada,

Rasteira e bênção disso você não sabia não.

Maldade existe, camará,

Maldade existe...”



Roda de tradição – Marquinho Coreba


“Se chegou, está bem chegado

Tem que pisar devagar

Galo que cantou fora do Terreiro

Se sabe cantar, tem muito que jogar.”



Cordão de Ouro – Marquinho Coreba


“Na fazenda de Maracangalha

Teve um dia de azar

Teve uma morte encomendada

Por um tal de Baltazar

Oi, por uma desavença

Na usina que trabalhou

Doutor Zeca mandou uma carta

Pra que se matasse o portador...”



Praticando Capoeira – Tonho Matéria


“Vacilou cai, vacilou cai

Na roda de capoeira

Vacilou cai.

Se você cair, eu vou rir de você...”


E por aí vai. São tantas as músicas e tantas mensagens carregadas nelas que acho impossível expressar aqui todas. Até porquê a Capoeira é viva, está num eterno processo de desenvolvimento. Como diria o saudoso mestre Pastinha: “Seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível até ao mais sábio capoeirista”.