domingo, 9 de maio de 2021

Meus três encontros com Ajuricaba, ou Uma ópera de 1100 decibéis


Prólogo


Meu primeiro contato com Corubo aconteceu em meados de 2019, precisamente em uma tarde quando eu estava indo ao trabalho e meus ouvidos testemunharam os primeiros acordes de Ãngy Mbya Kueíry Hachypáma, Opa Mba'e Achy Avei. Lembro-me que, naquela época, eu costumava fazer download de vários álbuns e colocar tudo no celular no modo aleatório, ou seja, não havia nada que me preparasse para o que eu estava prestes a ouvir. O som me impressionou tanto, que eu escutei com os dois fones (por viver em uma das cidades mais perigosas do mundo, não podia me dar ao luxo de tampar os dois ouvidos e assim deixar de escutar o que se passa ao meu redor). Descrever o que senti é difícil, mas se de certa forma coloquei minha sobrevivência em perigo para poder apreciar o som, isso significa alguma coisa.

Desde então escutei muitas e muitas vezes a discografia completa e tive a felicidade de poder me comunicar com Cauã e conhecer mais sobre a banda e sua militância. Em 2020, quando fiz uma leitura ao vivo do meu segundo romance Assim na Terra como em Marte, tive o prazer de lê-lo ao som de grandiosos álbuns como Ypykuera e Wuy Jugu, além do já mencionado Ãngy Mbya Kueíry Hachypáma, Opa Mba'e Achy Avei.

Assim, qual não foi a minha surpresa ao ser notificado pessoalmente por Cauã sobre o lançamento de seu mais novo álbum, Ajuricaba? Respondi-lhe que a honra que eu sentia era inenarrável e que escutaria a obra em momento oportuno, para depois compartilhar minhas impressões. Dizer apenas que “gostei” ou que o som é “muito bom” não faz jus a este trabalho monumental que levou mais de uma década para produzir. Escutar Ajuricaba, ao meu ver, requer um preparo espiritual e psicológico, não é algo que eu poderia fazer a qualquer momento, enquanto realizo atividades corriqueiras. Desde o primeiro lockdown, passei a usar uma parte do tempo adicional que tenho em casa para meditar. Assim, no dito momento oportuno, mergulhei em uma meditação profunda ao som de Ajuricaba. Este foi meu primeiro encontro com a lenda.


Primeiro encontro


O som inicial de flautas e maracas sugere uma conexão ancestral quase tátil. Meu corpo, relaxado e inerte, vibrava por dentro como se batesse os pés em círculos, em uma cerimônia sagrada. O defumador que usei ainda sugeria a fumaça de uma fogueira mágica dos espíritos afro-indígenas que habitam em mim. Logo o ritmo se intensifica, acompanhado pelas batidas cardíacas, até que desaba um toró metálico, a tempestade de sons que faz Corubo ser a potência que é. Não sei por quanto tempo escutei e até que altura, pois perdi a consciência - por alguns segundos, minutos ou horas, eu realmente não sei. Acordei ofegante, sem saber quanto tempo havia decorrido, e me dei conta de que ainda não tinha passado sequer da faixa-título. Ou será que o player já estava repetindo o álbum pela enésima vez?

Seja como for, fiquei realmente muito impressionado com a qualidade e a grandeza do som. Sentia como se tivesse assistido a um grande épico encenado em uma ópera. Uma ópera tenebrosa que deixou uma marca fugaz na minha memória, como os sonhos que tenho e que se esvaem assim que me levanto. A urgência de alguns afazeres me impediram de continuar a escutar, de preferência conscientemente, de modo que decidi não me apressar e prosseguir com a viagem sonora outro dia, com a devida atenção.


Segundo encontro


Alguns dias depois - essa artificial noção do tempo, não-circadiana, está sendo contestada mais do que nunca neste período pandêmico -, devotei-me a escutar Ajuricaba novamente, desta vez face a face. Acontece que minha mente inquieta plasmava imagens das mais desvairadas no interior de minhas pálpebras cerradas, enquanto escutava a primeira faixa, mas a imagem da capa de Ajuricaba era uma constante, com seus olhos enigmáticos e feições cadavéricas a fitar-me. Os calafrios que senti diante das aparentes alucinações tornavam meu corpo uma espécie de equalizador humano, reagindo como um organismo vivo às ondas sonoras. Estremeci ao ouvir as palavras


Hesápe, ipy’ápe, peteĩ te’ýi peteĩ tapére mante oho vaerã:
ñorairõ, ñemano, sãso térã jejopy ha teko rei!


Tal como os encantados falam em línguas ancestrais, senti como se esta fosse a voz de um encantado me sacudindo, dizendo algo que entendo, só não sei como - nem se devo - expressar. Um pensamento sempre atraiu minha curiosidade: será que algum dia eu escutaria alguma língua que eu entendo sem fazer ideia como? Existem alguns dialetos indo-europeus que entendo por tabela, mas será que eu seria capaz de entender uma língua realmente diferente de todas as que eu falo? Acredito que estes versos respondem esse questionamento.

A faixa Ajuricaba conta com exatos 17’22” de duração. O texto que acompanha o lançamento conta a história do grande líder manaó que lutou com bravura contra a invasão portuguesa. A guerra se intensifica em 1723, de modo que, se lermos a canção como uma linha do tempo, a viagem que a faixa-título proporciona - e que viagem! - não começa com a chegada dos portugueses, como a historiografia colonialista prega até hoje, e sim, termina com esse conflito entre mundos. Mais do que um pano de fundo, a faixa Ajuricaba propõe uma viagem ao mundo dos sonhos, no conceito compartilhado por Ailton Krenak em sua obra Ideias para adiar o fim do mundo, isto é, a relação com o ancestral nas interações com o meio-ambiente, com um passado que vive dentro de nós e que se recusa a aderir a essa noção de tempo linear imposto pela suposta civilização ocidental.

Apesar de manter a consciência ao longo da faixa (creio eu), novamente perdi a noção do tempo e acreditei ter terminado o álbum quando escutei os borbulhos finais que simbolizam o momento em que o protagonista se lança ao rio, preferindo a morte no abraço de Boiúna do que a servidão ao inimigo alienígena. Entretanto, não tardei a dar-me conta de que aquela era somente a primeira faixa - isso era apenas o começo! Retornei à posição inicial e continuei a minha jornada sonora. Nesse momento, dei-me conta de que agora eu era Ajuricaba, emergindo das águas, recuperando o fôlego após lançar-me no rio-mar. Ajuricaba vive!

Os sons da floresta são como a calma que antecede a tempestade, afinal, enquanto há vida, há guerra. O salto ao rio, a respiração ofegante, a emergência, a luta nossa de cada dia... Olho para o rio e vejo a mesma paisagem que ancestrais viram ao longo de milênios nesta terra que alguns insistem em chamar de “novo mundo”. Tudo estremece com a passada da pavorosa Boiúna, rainha dos rios amazônicos. Tal como sob efeito do curare, meu corpo está imóvel. Sinto-me como se estivesse afundando nessa casca chamada “Paterson”. Sinto-me pequeno diante da tempestade que toma o rio caudaloso, instrumental, ao meu redor.

De repente, séculos se passam e me pergunto: “por que é tão difícil estar em paz nas américas?” [sic]. Como conseguimos a façanha de passar fome diante de tanta fartura? De nunca vivermos em paz em uma terra que dá tudo o que precisamos para viver e deixar viver? Minhas visões, ora mais, ora menos convulsivas, agora pairam num discurso que presenciei em Palmas, quando uma liderança indígena, cujo nome não convém mencionar aqui, afirmou para a plateia que “nunca fomos vencidos”. Viver em paz nesse projeto colonial chamado de “américa” é inerentemente impossível. Estamos em guerra desde que os primeiros europeus aqui chegaram. Os povos daqui nunca se renderam nem capitularam. Esse “mito da paz” se baseia na mentira e na injustiça, assim como o mito da “democracia (racial)”, que não engana mais ninguém. A condição de indígena é própria de uma sociedade injusta e que nunca se tornou realmente independente, pois se a independência tivesse sido alcançada pelos povos daqui, nem de “Brasil” isto se chamaria.

Nesse espírito, o álbum encerra com um poderoso manifesto contra a hipocrisia humana, sobretudo dentro dos paradigmas coloniais aos quais estamos presos. “Este mundo está queimando e poucos assumem a culpa”... Essa ideia de fim do mundo, presente tanto no título da obra de Krenak quanto no meu romance, no qual o mundo como conhecemos acaba no primeiro capítulo, é uma constante no imaginário coletivo. Nesse momento, contudo, vislumbrei o próprio álbum como uma espécie de evento apocalíptico. Para desenvolver esta ideia, bem como apreciar em maior profundidade a obra como um todo, certifiquei-me de que teria que escutar o álbum pelo menos mais uma vez. Yma guaré ñe’ê.


Terceiro encontro


Que fique escuro que todos os relatos aqui vão se somando, pois não há divisão real entre eles. Na minha cabeça, o espaço de dias entre as ocasiões em que meditei ao som do álbum foram meros intervalos, tal como aplausos, cujas pausas entre os encontros das mãos duram de frações de segundos até uma vida inteira. As experiências se somam e, nesta última seção, gostaria de explicar o porquê do subtítulo.

Horas atrás, acordei com dor de cabeça e resolvi meditar. Decidi que, neste domingo ensolarado, eu haveria de encontrar Ajuricaba mais uma vez e esperar estar em condições depois, para contar história. Este foi o mais doloroso dos encontros. Começo a ouvir a faixa-título e vou me recordando das minhas experiências passadas. Parece um espaço de tempo recente, mas o vulto de Corubo tocando este álbum em uma espécie de ópera sombria, numa floresta profunda, escura e úmida, pouco a pouco ressurgia na minha mente como se fosse reminiscência de tempos remotos. Ao contrário do que eu esperava, a cabeça apenas doía mais e mais, embora a inércia geralmente ajude a induzir efeito contrário. Minha respiração, esparsa e rarefeita, tal como o defumador, cessou quando Ajuricaba foi engolido pelo rio e, por longos segundos, fui incapaz de respirar, até que ele reemergiu, já em Boiúna. Senti muita dor nessa hora. Abri os olhos e já não era mais um domingo ensolarado - o céu escureceu, carregado de chuva. Contudo, o alívio de recuperar o fôlego ajudou a me restabelecer. De volta à floresta, aos sons de pássaros e insetos, senti-me como se eu fosse o protagonista, vagando até perder-me no brilho da serpente-mãe... quando os decibéis novamente explodem.

Tudo isso eu escutava, como de costume, com fones de ouvido, mas minha vontade era de sentir a vibração causada por gigantescas caixas de som, tal como em shows de metal pré-pandemia. Então, lembrei-me de que existe, segundo a NASA, uma quantidade de decibéis suficientemente alta para acabar com o universo: 1100. Para se ter uma ideia, um dos maiores estrondos já registrados no mundo, a erupção do vulcão Krakatoa, alcançou em torno de 310 dB, o que gerou uma onda sonora tão potente que cruzou o planeta três vezes até se dissipar, ceifando as vidas de aproximadamente três mil pessoas, em uma ilha vizinha - e isto se deveu somente ao som, audível até cerca de 5000 km de distância. O hipotético som de 1100 dB causaria ondas sonoras tão fortes que poderiam romper o próprio tecido do espaço-tempo, ao liberar mais energia do que existe no universo, criando um buraco negro capaz de engolir tudo, como a Terra nos engole na faixa 4, mostrando que ela não é nossa e sim nós somos dela.

Ao estremecerem com o som de Ajuricaba, as paredes metafísicas da minha mente sentiram esse mundo antropocentrista em que vivemos ruir. Essa ópera de 1100 decibéis veio para acabar com a ideia de que somos o centro do universo, a espécie mais inteligente e interessante que habita este planeta, que se julga tão importante que sua mera presença em algum lugar automaticamente o “desbrava”, “conquista” e “desvirgina”, atos que ela se acha destinada a realizar em outros planetas e sistemas solares. Não com a mentalidade que temos agora. Esta deve ser destruída pelas vibrações sonoras, pelo grito ancestral que vive em nós. Paradoxalmente, esta destruição é o que adia o fim do mundo, isto é, acabar com essa visão limitada e egoísta de mundo é o que se faz necessário para estarmos aqui de pé, para contar histórias à posteridade.


Epílogo


O encarte diz que os últimos registros de encontros com manaós datam de 1819 e que desse povo, cujo nome a cidade de Manaus herdou, não restou mais ninguém. Paradoxalmente, a luta continua. Eu me pergunto: quem escreveu estes registros? A quem interessa dizer que esse povo morreu? O estereótipo até hoje persiste: a Amazônia é terra indígena. Algo que percebo em muitos lugares é essa prática presente no discurso dominante de invisibilizar seus adversários: no Nordeste não tem povos indígenas, no Sudeste, no Sul… Tem, e como! De fato, tudo isto aqui é terra indígena ilegalmente ocupada. A resistência ativa perpetuada, mencionada no final do encarte, é o choque de realidade sentido na pele do opressor, cuja farsa não consegue se sustentar. Se ele diz que já não há indígenas, estes povos resistem, mesmo após a "morte", como vêm fazendo há séculos. Se dizem que suas línguas não são mais faladas, estas continuam a ecoar. Basta ouvi-las, nas matas, nos terreiros, nas almas. Nas palavras de Oodgeroo Noonuccal: “Não deixe que ninguém diga que o passado morreu. O passado é tudo acerca e dentro de nós”.

Agradeço imensamente a Corubo, especialmente a Cauã, pela oportunidade de escutar esta obra-prima. Ofereço-lhes minhas mais sinceras reverências. Aguyjevete!


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