segunda-feira, 8 de março de 2010

Rappel

Rappelling

Um salto. Um leve movimento com a mão direita, cerrando o punho alguns milímetros, e o corpo, que fazia uma semi parábola em queda livre, leva um solavanco e é lançado para frente com uma velocidade ainda maior que a inicial. O corpo vira praticamente de cabeça pra baixo e o lugar onde era impensável que pessoas andassem, se torna perfeitamente atingível. Um leve abrir de mãos e outro arremesso do próprio corpo, dessa vez rumo ao solo, em uma velocidade ainda maior. Novamente o punho se fecha, dessa vez com mais força, pra conter tanta rapidez, e os pés calmamente atingem o solo.

A jump. A slight move on the right hand, tightening its grasp a few millimeters and then the body, falling on a semi circle fashion, is thrown forward moving even faster. The body gets basically upside down and the place where earlier it was unbelievable that people could walk on, now is perfectly reachable. A small move, loosening the hand and then the body is thrown once again, now towards the very ground, faster than never. One more time the fist tightens, now even more, in order to counter such great speed, and the feet quietly reach the ground.

Em que ambiente isso poderia ser feito? Como um simples abrir e fechar de mãos pode controlar o equilíbrio do corpo, em queda, de modo a revertê-la e alterar sua velocidade e sua trajetória, no fim neutralizando-a?
Que mente consegue controlar tudo isso em apenas 2 ou 3 segundos?

In what kind of environment could it ever be done? How come a simple tightening and loosening of the hands could control the body balance, falling down, reversing it and changing its speed and path, neutralizing it on its very end?
What kind of mind could control all this in just a matter of 2 or 3 seconds?

Isso é uma das coisas que o rappel me proporciona. Apesar de aparentemente ser uma atividade mais ligada ao físico, um esporte radical, com risco constante de acidentes até mesmo fatais, o rappel pra mim sempre foi como uma filosofia de vida, uma terapia psicológica, uma senda para mim mesmo. Através dele, conheci mais sobre si, aprendi a controlar meus reflexos, quebrar limites, reinventar minha maneira de enxergar o mundo e a minha própria vida. Estamos acostumados a viver com o chão aos nossos pés e o céu sobre nossas cabeças, a sentir a lei da gravidade e de ver tudo somente por essa ótica mas o rappel contraria tudo a que estamos acostumados desde que viemos a esse mundo, tornando-nos possível aquilo que era impensável, como caminhar pelas paredes e controlar nossos corpos através de simples movimentos com as mãos.

That’s one of the things rappelling gives me. Although it looks like a physical-related activity, an extreme sport, with accident risks, even mortal ones, rappelling for me has always been like a way of life, a psychological therapy and a path to my inner self. Through it, I learned more about myself, I learned to control my reflexes, break limits, reinvent my worldview and my own life. We’re used to live with the earth beneath our feet and the sky upon us, to feel the gravity laws on us and see the world from this point of view, but rappelling contraries everything we’ve been used to, making possible what was unthinkable, like walking on walls and controlling our body movements through simple hand moves.

O rappel muda a forma de se enxergar as coisas. O que é um prédio vira um desafio, o que é um pilar vira um ponto de ancoragem, o mirante atrás da barra de proteção vira o limiar entre a vida e a morte. É como se o rappel abrisse as portas pra um outro mundo, cheio de novas possibilidades. Mas isso não se encerra só ao rappel. Na minha vida cotidiana eu vejo reflexos dessa prática. Por vezes, quando me vejo numa situação em que devo agir rápido, como ao atravessar a rua e ser surpreso por um carro, eu vejo tudo com bastante calma, como se tudo se passasse mais lentamente pelos meus olhos. Outro dia, calculei ter tomado cerca de 5 decisões em uma fração de segundo, ao atravessar a pista, um ônibus vinha em minha direção, e calculei que eu poderia atravessar antes que ele me atingisse, mas logo em seguida vinha um taxi, muito mais rápido, então ponderei em que reação o motorista teria; certifiquei-me que os farois do carro me iluminaram e que o motorista já tinha me visto, enquanto eu observava do outro lado da rua outro carro que vinha em sentido inverso, uma placa de passagem de pedestres, sinal de que eles veriam que teriam que parar. Percebi que o taxi diminuiu a velocidade ao me ver e que o outro carro, em sentido inverso, estava afastado, assim, eu poderia atravessar metade da pista e esperá-lo passar, para atravessar o resto. Isso tudo em cerca de um ou dois segundos, que passaram tão lentamente quanto 10 ou 15 segundos na minha mente, tendo toda a calma para agir. Percebi que isso era o mesmo processo que acontecia em certas manobras de rappel, como o “lance em dois tempos” (a manobra descrita no início do texto). Eu tinha que agir em frações de segundo, levando vários fatores em consideração, como distância da borda (ponte/passarela), velocidade, rigidez da corda, tipo de clipagem (dois ou três pontos de atrito (quanto mais pontos de atrito, mais devagar é a decida)), freio e o tempo de reação, ou seja, quando exatamente apertar o freio, cerrando o punho.

Rappelling changes the way we see things. What was a building, now is a challenge, what was a column, now is a fixing point, the belvedere behind the protection bar is the edge between life and death. It’s like rappelling opens the door to another world, full of new possibilities. But it doesn’t only concern rappelling itself. In my daily life I see consequences of this sport. Some times, when I’m in a situation that demands me to act quickly, like to be surprised by a running car upon crossing the street, I watch everything very calmly, like it happened much slower in front of my eyes. Not long ago, I calculated that I took 5 decisions in a matter of fractions of a second, when crossing the street, I saw a bus running on my way and I calculated that I could cross the street before it could reach me, but then from behind it came a taxi, running much faster, then I considered the driver’s reaction: I made sure his lights showed me up so that he could see me clearly, while I noticed that in the other side of the street, another car was incoming, in the opposite direction, a walker pass sign, meaning they should be aware that they’d have to stop. I saw that the taxi driver slowed down upon seeing me and the other car, coming in the opposite direction, was more distant, allowing me to cross half of the road and wait it pass through, for crossing the road at last. All this took about 1 or 2 seconds, that passed as slow in my mind as 10 or 15 seconds, giving me all the time I needed to act. I realized that it was basically the same process that happened in some rappelling descents, like the “two turns jump” (the jump described in the beginning of this text). I had to act in a minimal time, taking many factors in consideration, such as distance from the board (bridge/overpass), speed, density of the rope, type of equipment setting (two or three friction points (the more the points are, the slower is the descent)), break and reaction time, that is, when exactly I should break, tightening my hand on the rope.

Outra manobra que mexeu muito com os meus reflexos foi o pqd (abreviatura de para-quedas, devido à posição de descida ser a mesma de um paraquedista em pleno ar). No início, era muito difícil controlar o freio, porque minha mão travava a corda, fazendo o corpo, que deveria ficar na posição horizontal, se desequilibrar totalmente. O pqd proporciona uma outra visão da descida de rappel, já que na descida padrão o praticante encontra-se de costas para a paisagem. No pqd, ele deve encarar a descida de frente, o que dá uma sensação de queda muito maior, ainda que seja uma descida como qualquer outra. Tive muita dificuldade em dominar essa manobra, porque meus reflexos eram mais fortes do que eu. Pelo que o cérebro entende, a situação é de queda-livre (pqd é uma das manobras de descida mais rápidas que existe), e, como disse, a visão do solo se aproximando é muito mais assustadora do que descer de costas. Assim, minha mão automaticamente travava o cabo, fazendo com que eu parasse, tentando me salvar da queda, e muitas vezes parecia que eu não tinha controle sobre a minha própria mão e meus reflexos.

Another maneuver that played with my reflexes was the pqd (in Portuguese, abbreviation for parachuting, given the similarity of the position of a parachutist when free-falling). In the beginning, it was very hard to control the break, because my hand locked the descent, making my body, supposed to be on a horizontal way, lose its balance, flickering down or upwards. Pqd gives another vision for the rappelling descent, if compared to the traditional back-oriented way of descending. On pqd, the landscape is faced directly, so the sensation of falling is much bigger, even though it’s a common descent. Controlling this kind of descent was very hard for me, because my reflexes were much stronger than me. My brain understood that I was free falling (pqd is one of the fastest way of descending) and, like I said, the vision of the ground coming closer and closer is much scarier than descending on the back. Thus, my hand automatically locked the rope, causing me to stop, trying to save me from falling onto the ground, and many times it looked like I couldn’t control my own hand and my reflexes.

Hoje não tenho o mínimo temor ao executar um pqd. Quando adquiri mais experiência, executei um pqd na positiva, ou seja, num paredão, e aí a situação é ainda mais estranha: eu corri na parede, em direção ao chão e aos meus companheiros que lá estavam! Isso é uma inversão total de tudo a que nós nos acostumamos durante a vida, de andar no chão e ver as paredes à nossa frente. Além disso, no fim, é necessário saltar para sair da torre e aí a sensação é de voo, como se eu pulasse e não mais voltasse ao chão e sim pousasse no que até então era a parede. Através de manobras assim e de muito treino consegui controlar meus reflexos e hoje os uso conscientemente. Isso é o aprendizado que o rappel me dá, o desenvolvimento pessoal e o caminho ao auto-conhecimento dos quais eu, sem saber, tanto precisava.

Nowadays I’m not afraid at all to descend pqd. When I acquired more experience, I descended pqd on a wall, and the situation is even weirder: I ran on the wall, towards the ground and to my mates down there! That’s a total inversion of everything that we’re used to in all our lives, walking on the ground and seeing the walls in front of us. Furthermore, it was necessary to jump from the very base of the tower, to leave the wall, and then the feeling is like flight, as if I jumped and no more came back to the ground but landed on what was the wall back then. Through maneuvers like that and a lot of training I could control my reflexes and today I use them consciously. That’s the lore acquired through rappelling, the self development and the path to self consciousness, which I, unaware of this, so much needed.

Através do rappel eu abri meus horizontes, percebi como é possível mudar a realidade, fazer coisas que antes pareciam improváveis, como o próprio rappel era pra mim. Conheci muitas pessoas e lugares novos, encarei desafios como caminhar 30km, de madrugada, carregando cerca de 20kg de equipamento ou subir uma torre abandonada de 30m de altura, fazer trilhas noturnas na floresta, saltar de pontes, deitar de cabeça pra baixo num paredão a 40 metros de altura, e tantas outras experiências que não só se resumem ao rappel mas que também influenciam na minha vida cotidiana. Uma dessas experiências foi quando me perdi na floresta, carregando 110m de cabo e equipamento, totalmente desequipado e inexperiente (era a primeira vez que eu acampava) e vi aqueles que eu chamava de amigos me deixarem pra trás, apesar de verem minha dificuldade e de serem mais experientes e estarem melhor equipados do que eu. Foi então que eu resolvi não me desesperar, mas sim procurar uma saída, acreditar em mim. Segui meus instintos e consegui chegar até um rio, que ficava próximo do nosso acampamento, onde tive que atravessar, caindo várias vezes (os 110 metros de corda que eu carregava ficaram bem mais pesados quando se molharam) e ainda atravessando mata fechada, descalço, de bermuda e camiseta. Foi aí que eu mudei a forma de encarar as coisas: eu passei a enxergar tudo como um teste, onde eu deveria mostrar que sou capaz de achar meu caminho e vencer as dificuldades. Ao invés de crer que eu estava perdido, de lamentar ter sido deixado pra trás, enxerguei aquilo como uma oportunidade de provar minha garra e força de vontade. Consegui atravessar a mata, subindo morros até chegar ao acampamento, com o equipamento intacto em mãos e surpresa daqueles que me deixaram pra trás. Aprendi com isso a acreditar em mim, não confiar demais nos outros e prometi a mim mesmo que nunca deixaria isso acontecer com ninguém em minha companhia.

Through rappelling I opened new horizons, I realized that it’s possible to change the reality, make things that seemed to be impossible, like rappelling itself was for me. I met many new people and new places, I accepted challenges like walking 30km (18mi) carrying nearly 20kg (44lbs) of equipments, or climbing up an abandoned 30m (98ft) high tower, walk through the forest at night, jump bridges off, lay down upside down atop a 40m (131ft) high wall and many other experiences that don’t regard only rappelling but also influences my daily life. One of these experiences happened when I got lost in the forest, carrying 110m (360ft) of rope and equipments, completely unequipped and inexperienced (it was the first time I ever camped) and I was left behind by those who I considered my friends, although they saw how difficult it was for me to follow them and they were much better equipped and more experienced than me. In this very moment I decided not to panic and to find a way out, believe in myself. I followed my instincts and eventually I reached out a river, which was close to our camp, and I crossed it, falling several times (the rope got much heavier wet) and crossing the woods, with my bare feet, shorts and t-shirt. Then I changed my way of seeing things: I started to look at that situation like a test, where I had to show that I could find my way out and overtake my difficulties. Instead of thinking that I was lost, regretting having been left behind, I then faced that as an opportunity to prove my bravery and the power of my will. I crossed the woods, climbing up hills till I reached the camp, with the equipment untouched and the surprised faces of those who left me behind. With this, I learned to believe in myself, don’t trust people too much and I promised myself that I would never allow such thing happen to anyone near me.

Como disse, o rappel me fez abrir meus horizontes e me tornou mais susceptível a mudanças, e isso é devido não só a essas experiências, como citei acima, mas ao que muitos falam sobre sua prática: o risco de vida. Verdade seja dita, todo praticante de rappel já pensou em morte e muitos são desapegados à própria vida, como eu era. Durante uma época, eu até encarava isso como uma honra, se eu morresse fazendo rappel, eu morreria feliz. Por mais que isso pareça loucura, suicídio, esse foi o primeiro passo para mudar minha vida: me desapegar de tudo, da minha própria existência, tornar-se capaz de tudo e deixar os medos pra trás. Como costumo responder ao me chamarem de corajoso por fazer rappel, parafraseando o personagem interpretado por Marco Nanini no filme “Lisbela e o Prisioneiro”, Frederico Evandro, pistoleiro do sertão alagoano: “Não é coragem, é costume”.

As I said, rappelling made me open my horizons and made me more likely to change, and that’s due not only to these experiences, cited above, but to the fact that many people talk about, regarding rappelling: life risk. The truth is that everybody who practices rappelling already thought about death and many don’t care too much about their own lives, like I didn’t. There was a time that I faced death with honor, in the case of dying rappelling, I’d die happy. Although it seems madness, suicide, that was the first step for changing my life: to don’t care about anything, at my own existence, become able to do anything and leave my fears behind. I use to reply when people say I’m brave, quoting a character from a Brazilian movie called “Lisbela e o Prisioneiro (Lisbela and the Prisoner) played by Marco Nanini in the role of Frederico Evandro, a murderer from the arid hinterlands of Alagoas state: “It’s not bravery, I’m just used to it”.


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Foi lá / It was there

10 comentários:

Anônimo disse...

Vc tem uma correspondência grande.

Lu_MCordeiro disse...

Olha,por mais que eu note seu entusiasmo e perceba qto lhe é útil fazer rappel e pqd,juro:eu nunca teria coragem.Tenho pavor de altura!Faço qualquer negócio no mar e na terra,no escuro e no mato,mas nas alturas sou incapaz.Nem mesmo aceito morar em andar alto.No máximo no quarto andar.Senão,não consigo nem olhar pela janela.Dá uma coisa ruim no estômago,sei lá.Já paguei mto mico por causa disso.E em parque de diversões.Montanha russa,roda gigante,torre pra pular,nada disso eu jamais consegui.Sentir o vazio sob mim é insuportável.No entanto viajo de avião numa boa.Agora mesmo estou na sua terra.Mochila nas costas,note book embaixo do braço,meu Pinscher na cestinha e,lá vim eu comer acarejé,curtir o espaço de uma casa com quintal e ver as estrelas com uma nitidez impressionante.
Eh,amigo,rappel parece ser o máximo e eu adoraria gostar,mas o medo é maior que tudo.
Bjsss...

Ju Marques disse...

Ah... a sensação de liberdade! Tbm muito me agrada.

"E do que é que quereis livrar-vos, para serdes LIVRES, senão de pedaços de vós mesmos"? Khalil Gibran

Norma Villares disse...

Olá homem do nome difícil...
Realmente acostuma e a sensação de liberdade deve ser muito grande. tenho vontade de fazer.
Eu fazia trilhas, e já fiz algumas muito perigosas. Bom para vencer medos, superar desafios.
Viu o texto que você participou?
Abraços

Norma Villares disse...

Segue:
Atitudes Ridículas

http://normavillares.blogspot.com/2010/03/atitudes-ridiculas.html

abraço

Norma Villares disse...
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Jozieli disse...

"Que mente consegue controlar tudo isso em apenas 2 ou 3 segundos?" Olha caríssimo, eu, no moinho das minhas limitações, prefiro ainda a viagem-astral. haha
Bom texto, adorei a fotografia!

E se meu personagem ganhasse pitadas do Prof. Jirafales, o tom caótico do meu texto ficaria azul. Deixemos o azul, ao menos hoje, para o seu céu.

Carla Palmeira disse...

foram duas vezes, apenas duas vezes que tive a oportunidade de sentir essa experiência incrível que é o Rappel, uma foi em Fortaleza e a outra aqui em Salvador no Viaduto da Garibaldi, suas palavras me fizeram reviver a sensação de 6 anos atrás (ultima vez que desci de Rappel)...Agradeço pela visita no meu blog =)

Anônimo disse...

Voce conseguiu descrever com muita clareza o que é o rappel e o significado sensações que ele proporciona!Parabens!

ticiana disse...

Amo rappel,e tudo o que podes descrever de forma até poética é extremamente verdadeiro! No teu texto pude sentir o prazer de liberdade e a sensação maravilhosa que a altura, limites, superações, adrenalina e tudo o que há nesta prática esportiva.Emocionei-me porém longe... mas não mt distante de fazer um pqd!uhuuuuuuuuuu Prá quê coragem?