Salvador Santos Costa, filho de Maria José dos Santos e Luiz Bispo da Costa, viveu de 27 de julho de 1944 a 24 de junho de 2023. Ele viveu 78 anos, 10 meses, 28 dias, 7 horas e 34 minutos. Ou seja, ele não morreu no dia 24, mas sim, completou seu ciclo de vida nesse dia. Painho viveu.
Ele viveu muito mais do que as estatísticas lhe permitiam vislumbrar. Ele poderia ter morrido na infância, de fome, na Vila do Amparo, Amélia Rodrigues, onde caçava passarinho, calango e teiú para sobreviver. Ele poderia ter nos deixado ainda antes de virmos a existir, em tenra adolescência, se aventurando nas feiras de Salvador, vendendo banana, fumo, jaca, para ganhar a vida. Poderia ter falecido adulto, na guarda civil, que viu tantos de seus colegas perecerem. Ele poderia ter partido em 2015, vítima de infarto, e este discurso teria, hoje, 8 anos de escrito. Ele poderia ter sucumbido à COVID, que ceifou as vidas de milhões de pessoas em todo o mundo.
Mas painho viveu para ver tudo isso passar, suas filhas e seus filhos, netas e netos, bisneto e bisnetas, crescerem com dignidade, todas as agruras de sua vida atribulada darem espaço a uma velhice tranquila, como epílogo de uma vida de realizações. Sim, ele temia a morte, assunto frequente de nossas conversas, mas não menos constante que as exaltações de estar "feliz da vida", da qual não queria nada mais.
Para vários povos daqui, como o tupi e o guarani, e da África, como o iorubá e o kimbundu, dos quais painho descendia e nós, por tabela, também, a morte não é antônimo da vida, pelo contrário. A morte é o que dá sentido à vida, é sua continuação. Apesar de apartado de suas raízes afro-indígenas devido aos terrores da colonialidade e do racismo estrutural, painho costumava dizer que se a morte não existisse, nós a inventaríamos, pois não faria sentido viver por incontáveis anos neste mundo, o que aponta para seu entendimento ancestral acerca desse fenômeno.
Católico de formação, mas crente fervoroso na reencarnação, ele sempre falava que haveria de desencarnar e viver ainda muitas e muitas vidas em novos corpos, e que ainda haveria de reencontrar Iracy Franco Costa, mainha, numa dessas andanças, certamente com outro nome. Penso que isso já está acontecendo, e não como uma narrativa meramente reconfortante num momento de perda, mesmo por que não sinto como se tivesse perdido meu pai. Como eu disse, ele completou seu ciclo, como todo ser vivo também há de completar, livrando-se do sofrimento ao qual o leito hospitalar o prendia.
Nós reencarnamos todos os dias. Agora mesmo, há células morrendo e nascendo em nossos corpos, se esvaindo em nossos fluidos, escapando do nosso sopro, sendo arrancadas de nossa pele para nunca mais voltar. Li muito tempo atrás que nossos corpos se renovam a cada sete ou oito anos, ou seja, praticamente nada do corpo de meu pai da época quando ele se tornou meu pai existe no corpo que sepultamos hoje, bem como quase nada do corpo que ele viu brotar do ventre de minha mãe está aqui, diante de vocês, agora. Assim, o sentimento de paternidade, a ideia de que somos crianças de alguém, é algo construído em nossa imaginação.
Com isso, não quero dizer que tais vínculos não tenham importância. Hoje mais do que nunca sinto orgulho de ser filho de Salvador Santos Costa, de ter conhecido este homem que, apesar dos pesares, transformou toda a dor e sofrimento de sua vida tortuosa, em respeito e ternura. A imaginação é a ferramenta mais poderosa da qual o ser humano dispõe. Nela, a matéria transcende para sentido e faz com que nossas vidas signifiquem alguma coisa. Assim, na minha mente, nos meus sentimentos, painho e mainha estão se reencontrando hoje, após quase 25 anos de separação terrena, transcendendo este plano para habitar nosso imaginário, onde estão todos nossos outros entes queridos.
Painho viveu, mainha viveu, e continuam a viver em nós, em seu legado, na matéria para a qual seus corpos retornam, matéria eterna que dejetamos de nossos corpos cotidianamente, que se renova, que se recria, que se eterniza.
Muito obrigado por tudo, painho.
25/06/2023
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