Há meses, ou, quem sabe, até anos que eu quero escrever um texto
sobre esquecimento aqui no blog, mas eu sempre... esqueço. Parece até piada,
mas isso me assusta. Quando era criança, eu pensava no esquecimento como um
poço sem fundo para onde as memórias – uns brinquedinhos pululantes –
inexoravelmente rumavam e eu, sisificamente, tratava de reaproximá-las, mas
elas eram cada vez mais numerosas e eu, com apenas dois braços curtos, não dava
conta de aninhá-las todas perto de mim. Com o tempo, acostumei-me a
simplesmente vê-las despencarem da beirada e entendi que isso, no fim das contas,
não é necessariamente ruim. Lembrar de tudo deve ser um fardo inimaginável (a
menos que você tenha hipertimesia, porque aí é imaginável, mas não sei se deixa
de ser um fardo).
O que continua a me irritar no esquecimento, todavia, é o
fato de que não temos praticamente controle algum sobre ele. Não controlamos do
que lembramos, ou do que esquecemos, e isso nos torna agentes passivos nessa história.
Se pensarmos bem, o esquecimento nos molda. Molda tanto que a discussão em
torno do livre arbítrio se torna irrelevante. De que adianta pensar que você
toma as decisões se depois você nem se lembra disso? Ah, mas o esquecimento é o
outro lado de uma moeda cuja cara é a lembrança. Com o mesmo efeito, poderíamos
dizer que somos quem ativamente nos esforçamos para lembrarmos que somos. Será?
É impossível falar de esquecimento sem falar de memória, a
qual, como George Orwell notou brilhantemente em seu livro 1984 – ninguém armazena,
é intangível, logo, ela pode ser controlada, manipulada, reinventada. Podemos
pensar na memória como um monólito a ser esculpido e a goiva é o esquecimento. Octavio
Paz dizia que ao falarmos, deixamos de falar infinitas coisas, ou seja, falar é
muito mais um ato de não falar. Ao
lembrarmo-nos de algo, esquecemos de uma infinidade de coisas; o que não
queremos esquecer se torna importante e todo o resto automaticamente deixa de
sê-lo. Lembrar é muito mais o ato de esquecer.
Algo particularmente frustrante é o fato de que eu gostaria
muito de me lembrar das coisas que aprendi na escola – física, química,
matemática, principalmente – e esquecer dos conflitos com os coleguinhas, das
decepções, das frivolidades. Se eu pudesse controlar o que esquecer e o que
lembrar, eu certamente seria outra pessoa, um devir incógnito. Contudo, este eu
que vos fala é o resultado de todas essas experiências que involuntariamente
esqueci e que ainda lembro. Eu sou esse bloco esculpido pelo esquecimento. Sou
formado pelas lembranças que não escolhi ter – sou grato, entretanto, por ter
muitas delas.
Um questionamento que talvez tenha servido de ponto de
partida para este texto surgiu alguns anos atrás (para variar, esqueci de
quando exatamente), durante a elaboração do meu primeiro romance, URSS 2.0,
onde uma personagem pondera sobre a etnogênese:
(...) infelizmente, a melhor decisão que um povo podia ter ao
avistar desconhecidos era a de massacrá-los impiedosamente. Se os nenets que
tiveram contato com os eslavos pela primeira vez tivessem feito isso, talvez a
história tivesse sido outra. Da mesma forma, a colonização da América pelos
europeus não teria acontecido se os indígenas não os tivessem recebido de
braços abertos. (...) “Mas a história do mundo é escrita com sangue” – pensava
Petro. “É assim que surgem os povos. Eles não brotam do nada, mas sim, como
frutos do embate de outros povos precursores.”
Tal como ocorre com indivíduos, a formação de um povo se dá
pela memória e, consequentemente, esquecimento. Diz-se autóctone o povo que já
não se lembra objetivamente de como surgiu ali, cuja memória está
paradoxalmente alicerçada em tempos imemoriais; outros, mais recentes,
meticulosamente reorganizam e documentam uma memória que legitime seus
discursos dominantes, escolhendo o que lembrar e o que esquecer, via de regra,
em detrimento dos primeiros. A historiografia, no nosso caso, lusófona, nos fala
de descobrimento, de colonização, esquecendo de propósito o genocídio, a
escravidão, a violência, o roubo. Sabemos que tudo isso ocorreu e reverbera
ensurdecedoramente, mas a memória coletiva, moldada pelo esquecimento, parece
priorizar as futilidades do recreio. Se nós pudéssemos escolher o que lembrar e
o que esquecer enquanto povo, talvez pudéssemos nascer como nação. Essa
nação-devir, incógnita por definição, certamente não se chamaria Brasil, pois
lembraríamos e cobraríamos justiça por tudo aquilo que a própria existência do
Brasil implica em esquecer e buscaríamos nos esquecer de tudo aquilo que o Brasil
implica em nos lembrar.
Ironicamente, empenhar-se em esquecer é uma corrida
para lugar nenhum. “Eu bebo para esquecer... nem me lembro mais do quê”, já
dizia o poeta ébrio, o que pode ter servido de inspiração para esse texto – eu
já não me lembro, mas a essa altura, acredito que esteja claro que minha
escrita foi moldada pelo esquecimento, e isso só comprova a minha tese.
Parece-me que a discussão sobre lembrarmo-nos para que a história não se repita
há muito já foi decidida e é por isso que História é uma matéria obrigatória. Não é disso que quero tratar aqui. Esquecer-se
de propósito é um curto-circuito, uma pequena viagem no tempo, na qual viajar
ao passado para mudar o futuro impossibilita a própria viagem, uma vez que seu
motivo inerentemente desaparece. Será por isso que não podemos escolher o que
esquecer? Será que, na verdade, podemos e, de fato, esquecemos aquilo que tanto
queríamos esquecer e, consequentemente, nos esquecemos disso?