‒ Sua teimosia ainda vai nos meter em
grandes apuros, Yara...
‒ Shhh! Silêncio, Imex! ‒ repreende
Yara, irritadiça. O Sol já está quase sobre sua cabeça e até agora a pequena
não conseguiu capturar nenhum peixe com sua lança improvisada.
Imex suspira, cansado de caçar
borboletas com seu irmão gêmeo, enquanto sua irmã mais velha insiste em fazer
trabalho de homem.
‒ Já temos bastante peixe para o tàkàk,
os adultos já trataram disso. Mesmo que você pesque algo será quase nada perto
do que vai ter hoje à noite! ‒ continua o menino.
Yara decide manter silêncio e se
concentrar. Desde o começo ela sabia que era má ideia trazer seus irmãozinhos
para o igarapé, mas eles insistiram tanto em vir junto com ela, ameaçando
contar tudo para a avó, que Yara aceitou.
‒ Por que você não faz assim como Amex e
voltar a brincar com as borboletas? Olhe como seu irmão está feliz... Amex? ‒
volta-se Yara ao menino, que agora parece petrificado.
‒ Vejam isso! ‒ aponta Amex para o rio.
As crianças vêem uma grande quantidade
de peixes mortos descendo pelo curso d’água, cada vez mais turvo, quando algo
entre eles se destaca. Ao aproximar-se, as crianças entendem, chocadas, que
trata-se do corpo de um homem, adulto, quase desnudo.
‒ O que será que aconteceu com ele? ‒
pergunta Amex, segurando a mão da irmã, amedrontado.
‒ Não sei, mas acho melhor voltarmos
para casa. ‒ diz Yara, tão amedrontada quanto o irmão, porém esforçando-se para
manter a calma e a pose de irmã mais velha, destemida.
Após algum tempo de caminhada, as
crianças avistam uma coluna de fumaça surgindo do meio da mata. Barulhos
estranhos e grunhidos são ouvidos. Yara se abaixa, levando os irmãos junto
consigo, quando Amex pisa no espinho de uma macaúba.
‒ Ai! ‒ grita o menino, acossado por uma
dor pungente. Sua boca é rapidamente tapada pela mão de Yara, atônita.
Mais grunhidos são ouvidos, seguidos de
barulho cada vez mais próximo de folhas secas sendo machucadas. De repente, um
raio corta o ar e as plantas, na direção das crianças. Yara não entende como um
raio pode surgir daquele jeito, sem chuva, mas o barulho de trovoada assegura
que é melhor correr. Mais e mais raios cortam a mata e os grunhidos avançam
ferozmente.
Amex corre com dificuldade, sendo puxado
pela irmã. Logo a trilha fica para trás e as crianças se vêem em terreno
desconhecido, em meio à mata fechada.
‒ Bem que a vovó avisou! Ela disse para
não sairmos sozinhos pela floresta, porque os Kuben Kakrit iam nos pegar! ‒
lamenta Imex, deixando um rastro de sangue por onde passa.
‒ E como você sabe que são Kuben Kakrit?
Você nunca viu nenhum! ‒ retruca Yara, tentando tirar esse pensamento da cabeça
do irmão.
‒ Eles aparecem de várias formas, a vovó
disse, não lembra? Eles podem inclusive se parecer conosco! ‒ responde o
menino.
Subitamente, Imex, que abria caminho com
uma vara, se detém.
‒ O que foi, Imex? ‒ pergunta Yara,
ofegante e desesperada.
Não é necessária nenhuma resposta da
parte do irmão. Yara e Imex se deparam com uma visão tão estranha quanto
curiosa.
‒ Why
are you running, kids? ‒ grunhe o que parece ser uma mulher, pálida como a
lua cheia, de cabelo amarelo e olhos cinzentos, como se fosse cega, mostrando
seus dentes amarelos e medonhos como se sua intenção fosse sorrir... ou devorá-los.
Seu corpo está coberto como que por uma rede de pesca muito, muito fina, de
cores outrora vivas, hoje desbotadas e gastas. Ao seu lado encontra-se o que
parece ser seu oposto masculino, acompanhado por um homem normal, porém vestido
de maneira semelhante.
‒ Kuben Kakrit! ‒ grita Amex, atônito.
‒ Djã ne ga aprõt? ‒ pergunta o homem
normal.
‒ Ele fala a nossa língua?! ‒
surpreende-se Imex.
‒ Vai que os Kuben Kakrit também falam
nossa língua!? ‒ exclama Amex.
‒ Quietos! ‒ repreende Yara. ‒ Deixem
que eu cuido disso!
A menina se aproxima do misterioso trio,
ao passo que junta seus irmãos logo atrás, protegendo-os com seu próprio corpo.
‒ Você é metuktire? ‒ pergunta Yara ao
homem normal, notando seu sotaque.
‒ Sou. ‒ responde o jovem, não muito
mais velho que ela, embora aparente ser. ‒ E você, menkranoti?
‒ Menkranoti, sim... ‒ responde Yara,
vendo no jovem uma chance de se salvar de seus perseguidores. ‒ Tem monstros
nos perseguindo, eles soltam raios e fumaça, fazem barulhos estranhos e estão
matando o rio!
‒ Não temam, vocês estão seguros
conosco. ‒ sorri o jovem. ‒ Vocês vão ver, não há motivo para ter medo.
‒ Só precisamos que vocês nos acompanhem
até a nossa aldeia e...
O barulho de folhas sendo machucadas
alcança a pequena clareira onde o grupo se encontra, para espanto das crianças,
que não esperavam ser alcançadas tão rapidamente. Das moitas saltam três
figuras aparentemente humanas, sujas e maltrapilhas.
‒ Ah, então vocês acharam os pestinhas!
‒ grunhe um deles, visivelmente embriagado, numa fala incompreensível para Yara
e seus irmãos.
‒ Eram esses os grunhidos que eu ouvia!
Esse barulho de folhas... ‒ exclama Amex, apavorado.
‒ Calma, eles são amigos. ‒ sorri o
misterioso jovem. ‒ O que vocês querem com os pequenos?
‒ Mais um morreu hoje de manhã, por
causa dessa maldita malária! ‒ esbraveja um homem de espingarda. ‒ Precisamos
de mais gente para trabalhar na mina, mas não podemos chamar a atenção dos
índios, por enquanto... Esses meninos nos vem a calhar, ainda são pequenos, mas
isso até que é bom, dá para fazer a cabeça deles contra a aldeia. Quando
tivermos bastante ouro e armas, eles vão lutar do nosso lado!
O jovem explica a situação para a mulher
e, em seguida, traduz:
‒ Mary diz que é para levar somente os
meninos. A menina deve voltar para a aldeia e dizer que eles morreram afogados.
Assim, ninguém saberá da mina.
‒ A gringa confia demais nessa
diabinha... Como garantir que ela não abrirá o bico e trará os bugres para
resgatá-los? ‒ pergunta um dos garimpeiros.
‒ Deixe isso conosco. ‒ responde o
intérprete. ‒ Ande, menininha, entregue-nos seus irmãos. E se der um pio lá na
aldeia, eles morrem!
Yara não entende bem o que está
acontecendo, mas sabe que não pode confiar naqueles estranhos Sorrateiramente,
ela segura os braços de seus apreensivos irmãos e bate em disparada, ao que o
homem da espingarda atira em sua direção e ela para instantaneamente.
‒ O raio! Kuben Kakrit! ‒ exclama Amex,
desesperado. ‒ Bem que vovó avisou...
‒ Mais um passo e eu acabo com vocês! ‒
grita o homem da espingarda, cuja língua as crianças não entendem, mas seu tom
ameaçador, sim.
Entendendo que estão numa enrascada,
cercados de Kuben Kakrit, as crianças suam frio, sem saber para onde ir, com o
cano fumegante do lançador de raios apontado para elas.
De repente, do meio da mata, surge um
enorme vulto que voa em direção ao pescoço do garimpeiro armado: uma enorme
onça pintada, cujos incisivos dentes rasgam a pele de sua vítima, arrancando
suas veias como uma erva daninha é extraída pela raiz. A fera logo trata de
liquidar o garimpeiro seguinte, ao que o terceiro rapidamente pega a espingarda
de seu colega morto e dispara, em vão, pois a fera desvia.
Mary, como que ao mesmo tempo atônita e
extasiada, ergue a bíblia que carregava em direção à onça, proferindo um de
seus trechos:
‒ Then
the king commanded, and Daniel was brought and cast into the den of lions. The
king declared to Daniel, “May your God, whom you serve continually, deliver
you!” Daniel 6:16!
A enorme onça, atraída pela voz da
missionária, corre em sua direção, destroçando a bíblia com suas garras afiadas
e devorando o rosto da mulher, quando o garimpeiro finalmente consegue acertar
um tiro nas costelas da fera, que continua a devorá-la ferozmente, como se a
bala não surtisse efeito. O missionário, de facão em mãos, parte para cima da
fera, desferindo-lhe impiedosos golpes que fazem seu sangue felino jorrar.
Finalmente a onça arrefece e quando o missionário retoma o fôlego, percebe que as
crianças fugiram.
‒ We gotta catch those little bastards before they reach the village!
‒ vocifera o missionário, ao que o intérprete anui e chama o garimpeiro,
seguindo o rastro das crianças.
Os três homens logo se perdem pela
floresta, no que deveria ser uma trilha fácil, marcada pelo rastro de sangue do
pequeno Amex.
‒ Não sei não, William, aquela onça
parecia possuída por algum espírito... E agora estamos perdidos aqui nessa
mata! ‒ constata o intérprete. ‒ Eu sinto que a floresta não nos quer por aqui,
não quer que alcancemos as crianças. Talvez seja melhor deixá-los para trás,
ninguém há de acreditar neles...
‒ Isso é tolice de índio, seu idiota! ‒
esbraveja o missionário. ‒ É da vontade de Deus que nós capturemos aqueles
pestinhas, que pagarão pela sua salvação com o nobre trabalho nas minas, que há
de redimir o mal inerente à sua raça! Nossos parceiros no Alabama contam com esse
ouro. Eles mandarão armas e mais recursos, para que possamos salvar mais jovens
órfãos como você, João, que foram abandonados pelo próprio povo, mas que graças
a enviados como nós acharam o caminho do Céu!
João se cala, mas a inexplicável força
que ele sente na natureza lhe diz que tudo aquilo está muito errado.
O trio continua a seguir sem rumo pela
floresta cada vez mais profunda e escurecida pelas pesadas nuvens que ameaçam
trazer tempestade a qualquer momento. O garimpeiro, como que para afastar o
medo, resolve puxar conversa:
‒ Ei, João, pergunte aí pro gringo o que
é que ele acha de Vargas. Ouvi dizer que a mineração só vai poder ser feita por
gente dele.
João traduz a pergunta para William e,
em seguida, transmite sua réplica:
‒ O que se passa na capital, ou melhor,
no litoral, para nós dá no mesmo que nada. Aqui o que vale é a nossa lei. A lei
divina. Veja que a escravidão foi proibida pela lei do homem, mas não pela lei
divina. A bíblia deixa bem claro, em Levítico 25:44-46, que podemos escravizar
contanto que o escravo seja oriundo das nações ao nosso redor. Nós estamos
libertando almas, guiando o rebanho do senhor para o Reino dos Céus...
O garimpeiro se cala e segue caminho.
Enquanto isso, não muito distante
dali...
‒ Minha perna! ‒ grita Imex, apavorado.
‒ O que foi?! ‒ volta-se Yara, aturdida,
quando vê uma cobra peçonhenta fugindo para a toca.
‒ E agora? ‒ chora Amex, que já estava
mancando, desesperado ao ver as marcas de picada na perna do irmão.
‒ Já estamos perto da aldeia, não podemos
desistir agora! Vamos! ‒ exclama Yara, apoiando os dois irmãos pelos ombros.
O trio tortuosamente avança mais um
pouco quando ouve um disparo vindo detrás: o raio passa zunindo pelo ouvido de
Yara, que ensurdece por um instante. Esta se volta e avista os homens, correndo
feito loucos atrás dela. Exausta, com seus irmãos feridos e incapazes de
correr, a menina grita o mais alto que pode por socorro.
‒ Pode gritar o quanto quiser, diabinha,
ninguém vai te ouvir! Hahaha! ‒ berra o garimpeiro, rindo feito louco.
‒ Don’t
shoot! ‒ grita William, gesticulando para que o garimpeiro não atire. ‒ She can’t be found with a bullet wound.
‒ Não atire! ‒ traduz João, abaixando a
espingarda do garimpeiro.
‒ Certo. Vamos dar um fim nessa
pestinha antes que ela nos traga problemas! ‒ exclama o garimpeiro, avançando
para esganar Yara.
‒ Mas o acordo era deixá-la ir para a
aldeia! ‒ intervém João.
‒ Let
him finish her! She’s useless to us anyway. After he strangles her we’ll throw
her to the piranhas. They will think the other little Indians met the same fate
and their smaller bodies were completely devoured. ‒ detém William, mudando de planos.
Yara, paralisada de medo, não sabe como
reagir, temendo pela vida de seus irmãos, que estão nessa enrascada por culpa
de sua desobediência. João não aguenta ver aquele garimpeiro imundo esganando a
pobre menina na frente de seus irmãos prestes a terem uma vida de escravo como
a dele, porém ainda pior, nas minas, e vira o rosto. Contudo, ele ouve vozes,
incessantes, como se vindas de cada árvore, planta e animal ao seu redor...
Vozes que os missionários o ensinaram a ignorar, mas que agora gritam com toda
força! O jovem arrebata um pesado galho caído a seu lado e furiosamente atinge
a cabeça do garimpeiro, que rola pelo chão estrebuchando de dor enquanto seu
sangue quente se esvai.
‒ You
goddamn traitor! ‒ esbraveja William, sacando seu facão e partindo em
direção ao jovem agora mais metuktire do que nunca.
O galho é pesado demais para atacar ou
mesmo se defender dos poderosos golpes do missionário norte-americano, que
brande a arma branca com notável habilidade, ferindo o braço do jovem
intérprete, que deixa o galho cair, atingindo seu tórax logo em seguida.
‒ We’ve
brought you faith! We’ve brought you civilization! And look what you did to us!
‒ vocifera William, prestes a desferir o golpe de misericórdia, quando uma seta
acerta sua testa em cheio.
João olha para trás, de onde veio a
flecha, e identifica um grupo de caçadores menkranoti, que ouviram os gritos
desesperados de Yara e vieram em seu socorro.
‒ Djãm amex? ‒ pergunta o arqueiro.
As crianças anuem, aliviadas.
‒ Jãnh ne gar mõ? ‒ pergunta outro
caçador, tentando entender a situação.
‒ Onij ngôtyktikurũm ne bar mõ. Ar ije
tep o idjàbirmã ne bar mõ... ‒ começa a explicar Amex o que aconteceu.
...
‒ Agora você tem um lar e um novo nome:
Tàkàk! ‒ pronuncia a sorridente avó das crianças fazendo curativos nas feridas
do jovem metuktire. ‒ Tal qual o festival que se inicia hoje e que terá um
significado especial: o retorno das nossas crianças e do bravo guerreiro que as
salvou!
As crianças se sentam ao redor do jovem,
sorridentes por terem se livrado da morte certa na mão dos temíveis Kuben
Kakrit. Elas hoje aprenderam uma grande lição e viveram uma história que hão de
contar por gerações e gerações: sobre como o mal pode se manifestar de diversas
formas e como nas adversidades, quando tudo parece perdido, a união prevalece e
nos traz ajuda de onde menos esperamos.
‒ Meykomré... ‒ agradece Tàkàk, com
lágrimas nos olhos. ‒ Meykomré...
07.10.16
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