sábado, 11 de fevereiro de 2017

Kuben Kakrit: As divindades malignas do Xingu


‒ Sua teimosia ainda vai nos meter em grandes apuros, Yara...
‒ Shhh! Silêncio, Imex! ‒ repreende Yara, irritadiça. O Sol já está quase sobre sua cabeça e até agora a pequena não conseguiu capturar nenhum peixe com sua lança improvisada.
Imex suspira, cansado de caçar borboletas com seu irmão gêmeo, enquanto sua irmã mais velha insiste em fazer trabalho de homem.
‒ Já temos bastante peixe para o tàkàk, os adultos já trataram disso. Mesmo que você pesque algo será quase nada perto do que vai ter hoje à noite! ‒ continua o menino.
Yara decide manter silêncio e se concentrar. Desde o começo ela sabia que era má ideia trazer seus irmãozinhos para o igarapé, mas eles insistiram tanto em vir junto com ela, ameaçando contar tudo para a avó, que Yara aceitou.
‒ Por que você não faz assim como Amex e voltar a brincar com as borboletas? Olhe como seu irmão está feliz... Amex? ‒ volta-se Yara ao menino, que agora parece petrificado.
‒ Vejam isso! ‒ aponta Amex para o rio.
As crianças vêem uma grande quantidade de peixes mortos descendo pelo curso d’água, cada vez mais turvo, quando algo entre eles se destaca. Ao aproximar-se, as crianças entendem, chocadas, que trata-se do corpo de um homem, adulto, quase desnudo.
‒ O que será que aconteceu com ele? ‒ pergunta Amex, segurando a mão da irmã, amedrontado.
‒ Não sei, mas acho melhor voltarmos para casa. ‒ diz Yara, tão amedrontada quanto o irmão, porém esforçando-se para manter a calma e a pose de irmã mais velha, destemida.
Após algum tempo de caminhada, as crianças avistam uma coluna de fumaça surgindo do meio da mata. Barulhos estranhos e grunhidos são ouvidos. Yara se abaixa, levando os irmãos junto consigo, quando Amex pisa no espinho de uma macaúba.
‒ Ai! ‒ grita o menino, acossado por uma dor pungente. Sua boca é rapidamente tapada pela mão de Yara, atônita.
Mais grunhidos são ouvidos, seguidos de barulho cada vez mais próximo de folhas secas sendo machucadas. De repente, um raio corta o ar e as plantas, na direção das crianças. Yara não entende como um raio pode surgir daquele jeito, sem chuva, mas o barulho de trovoada assegura que é melhor correr. Mais e mais raios cortam a mata e os grunhidos avançam ferozmente.
Amex corre com dificuldade, sendo puxado pela irmã. Logo a trilha fica para trás e as crianças se vêem em terreno desconhecido, em meio à mata fechada.
‒ Bem que a vovó avisou! Ela disse para não sairmos sozinhos pela floresta, porque os Kuben Kakrit iam nos pegar! ‒ lamenta Imex, deixando um rastro de sangue por onde passa.
‒ E como você sabe que são Kuben Kakrit? Você nunca viu nenhum! ‒ retruca Yara, tentando tirar esse pensamento da cabeça do irmão.
‒ Eles aparecem de várias formas, a vovó disse, não lembra? Eles podem inclusive se parecer conosco! ‒ responde o menino.
Subitamente, Imex, que abria caminho com uma vara, se detém.
‒ O que foi, Imex? ‒ pergunta Yara, ofegante e desesperada.
Não é necessária nenhuma resposta da parte do irmão. Yara e Imex se deparam com uma visão tão estranha quanto curiosa.
Why are you running, kids? ‒ grunhe o que parece ser uma mulher, pálida como a lua cheia, de cabelo amarelo e olhos cinzentos, como se fosse cega, mostrando seus dentes amarelos e medonhos como se sua intenção fosse sorrir... ou devorá-los. Seu corpo está coberto como que por uma rede de pesca muito, muito fina, de cores outrora vivas, hoje desbotadas e gastas. Ao seu lado encontra-se o que parece ser seu oposto masculino, acompanhado por um homem normal, porém vestido de maneira semelhante.
‒ Kuben Kakrit! ‒ grita Amex, atônito.
‒ Djã ne ga aprõt? ‒ pergunta o homem normal.
‒ Ele fala a nossa língua?! ‒ surpreende-se Imex.
‒ Vai que os Kuben Kakrit também falam nossa língua!? ‒ exclama Amex.
‒ Quietos! ‒ repreende Yara. ‒ Deixem que eu cuido disso!
A menina se aproxima do misterioso trio, ao passo que junta seus irmãos logo atrás, protegendo-os com seu próprio corpo.
‒ Você é metuktire? ‒ pergunta Yara ao homem normal, notando seu sotaque.
‒ Sou. ‒ responde o jovem, não muito mais velho que ela, embora aparente ser. ‒ E você, menkranoti?
‒ Menkranoti, sim... ‒ responde Yara, vendo no jovem uma chance de se salvar de seus perseguidores. ‒ Tem monstros nos perseguindo, eles soltam raios e fumaça, fazem barulhos estranhos e estão matando o rio!
‒ Não temam, vocês estão seguros conosco. ‒ sorri o jovem. ‒ Vocês vão ver, não há motivo para ter medo.
‒ Só precisamos que vocês nos acompanhem até a nossa aldeia e...
O barulho de folhas sendo machucadas alcança a pequena clareira onde o grupo se encontra, para espanto das crianças, que não esperavam ser alcançadas tão rapidamente. Das moitas saltam três figuras aparentemente humanas, sujas e maltrapilhas.
‒ Ah, então vocês acharam os pestinhas! ‒ grunhe um deles, visivelmente embriagado, numa fala incompreensível para Yara e seus irmãos.
‒ Eram esses os grunhidos que eu ouvia! Esse barulho de folhas... ‒ exclama Amex, apavorado.
‒ Calma, eles são amigos. ‒ sorri o misterioso jovem. ‒ O que vocês querem com os pequenos?
‒ Mais um morreu hoje de manhã, por causa dessa maldita malária! ‒ esbraveja um homem de espingarda. ‒ Precisamos de mais gente para trabalhar na mina, mas não podemos chamar a atenção dos índios, por enquanto... Esses meninos nos vem a calhar, ainda são pequenos, mas isso até que é bom, dá para fazer a cabeça deles contra a aldeia. Quando tivermos bastante ouro e armas, eles vão lutar do nosso lado!
O jovem explica a situação para a mulher e, em seguida, traduz:
‒ Mary diz que é para levar somente os meninos. A menina deve voltar para a aldeia e dizer que eles morreram afogados. Assim, ninguém saberá da mina.
‒ A gringa confia demais nessa diabinha... Como garantir que ela não abrirá o bico e trará os bugres para resgatá-los? ‒ pergunta um dos garimpeiros.
‒ Deixe isso conosco. ‒ responde o intérprete. ‒ Ande, menininha, entregue-nos seus irmãos. E se der um pio lá na aldeia, eles morrem!
Yara não entende bem o que está acontecendo, mas sabe que não pode confiar naqueles estranhos Sorrateiramente, ela segura os braços de seus apreensivos irmãos e bate em disparada, ao que o homem da espingarda atira em sua direção e ela para instantaneamente.
‒ O raio! Kuben Kakrit! ‒ exclama Amex, desesperado. ‒ Bem que vovó avisou...
‒ Mais um passo e eu acabo com vocês! ‒ grita o homem da espingarda, cuja língua as crianças não entendem, mas seu tom ameaçador, sim.
Entendendo que estão numa enrascada, cercados de Kuben Kakrit, as crianças suam frio, sem saber para onde ir, com o cano fumegante do lançador de raios apontado para elas.
De repente, do meio da mata, surge um enorme vulto que voa em direção ao pescoço do garimpeiro armado: uma enorme onça pintada, cujos incisivos dentes rasgam a pele de sua vítima, arrancando suas veias como uma erva daninha é extraída pela raiz. A fera logo trata de liquidar o garimpeiro seguinte, ao que o terceiro rapidamente pega a espingarda de seu colega morto e dispara, em vão, pois a fera desvia.
Mary, como que ao mesmo tempo atônita e extasiada, ergue a bíblia que carregava em direção à onça, proferindo um de seus trechos:
Then the king commanded, and Daniel was brought and cast into the den of lions. The king declared to Daniel, “May your God, whom you serve continually, deliver you!” Daniel 6:16!
            A enorme onça, atraída pela voz da missionária, corre em sua direção, destroçando a bíblia com suas garras afiadas e devorando o rosto da mulher, quando o garimpeiro finalmente consegue acertar um tiro nas costelas da fera, que continua a devorá-la ferozmente, como se a bala não surtisse efeito. O missionário, de facão em mãos, parte para cima da fera, desferindo-lhe impiedosos golpes que fazem seu sangue felino jorrar. Finalmente a onça arrefece e quando o missionário retoma o fôlego, percebe que as crianças fugiram.
            ‒ We gotta catch those little bastards before they reach the village! ‒ vocifera o missionário, ao que o intérprete anui e chama o garimpeiro, seguindo o rastro das crianças.
Os três homens logo se perdem pela floresta, no que deveria ser uma trilha fácil, marcada pelo rastro de sangue do pequeno Amex.
‒ Não sei não, William, aquela onça parecia possuída por algum espírito... E agora estamos perdidos aqui nessa mata! ‒ constata o intérprete. ‒ Eu sinto que a floresta não nos quer por aqui, não quer que alcancemos as crianças. Talvez seja melhor deixá-los para trás, ninguém há de acreditar neles...
‒ Isso é tolice de índio, seu idiota! ‒ esbraveja o missionário. ‒ É da vontade de Deus que nós capturemos aqueles pestinhas, que pagarão pela sua salvação com o nobre trabalho nas minas, que há de redimir o mal inerente à sua raça! Nossos parceiros no Alabama contam com esse ouro. Eles mandarão armas e mais recursos, para que possamos salvar mais jovens órfãos como você, João, que foram abandonados pelo próprio povo, mas que graças a enviados como nós acharam o caminho do Céu!
João se cala, mas a inexplicável força que ele sente na natureza lhe diz que tudo aquilo está muito errado.
O trio continua a seguir sem rumo pela floresta cada vez mais profunda e escurecida pelas pesadas nuvens que ameaçam trazer tempestade a qualquer momento. O garimpeiro, como que para afastar o medo, resolve puxar conversa:
‒ Ei, João, pergunte aí pro gringo o que é que ele acha de Vargas. Ouvi dizer que a mineração só vai poder ser feita por gente dele.
João traduz a pergunta para William e, em seguida, transmite sua réplica:
‒ O que se passa na capital, ou melhor, no litoral, para nós dá no mesmo que nada. Aqui o que vale é a nossa lei. A lei divina. Veja que a escravidão foi proibida pela lei do homem, mas não pela lei divina. A bíblia deixa bem claro, em Levítico 25:44-46, que podemos escravizar contanto que o escravo seja oriundo das nações ao nosso redor. Nós estamos libertando almas, guiando o rebanho do senhor para o Reino dos Céus...
O garimpeiro se cala e segue caminho.
Enquanto isso, não muito distante dali...
‒ Minha perna! ‒ grita Imex, apavorado.
‒ O que foi?! ‒ volta-se Yara, aturdida, quando vê uma cobra peçonhenta fugindo para a toca.
‒ E agora? ‒ chora Amex, que já estava mancando, desesperado ao ver as marcas de picada na perna do irmão.
‒ Já estamos perto da aldeia, não podemos desistir agora! Vamos! ‒ exclama Yara, apoiando os dois irmãos pelos ombros.
O trio tortuosamente avança mais um pouco quando ouve um disparo vindo detrás: o raio passa zunindo pelo ouvido de Yara, que ensurdece por um instante. Esta se volta e avista os homens, correndo feito loucos atrás dela. Exausta, com seus irmãos feridos e incapazes de correr, a menina grita o mais alto que pode por socorro. 
‒ Pode gritar o quanto quiser, diabinha, ninguém vai te ouvir! Hahaha! ‒ berra o garimpeiro, rindo feito louco.
Don’t shoot! ‒ grita William, gesticulando para que o garimpeiro não atire. ‒ She can’t be found with a bullet wound.
‒ Não atire! ‒ traduz João, abaixando a espingarda do garimpeiro.
‒ Certo. Vamos dar um fim nessa pestinha antes que ela nos traga problemas! ‒ exclama o garimpeiro, avançando para esganar Yara.
‒ Mas o acordo era deixá-la ir para a aldeia! ‒ intervém João.
Let him finish her! She’s useless to us anyway. After he strangles her we’ll throw her to the piranhas. They will think the other little Indians met the same fate and their smaller bodies were completely devoured.  ‒ detém William, mudando de planos.
Yara, paralisada de medo, não sabe como reagir, temendo pela vida de seus irmãos, que estão nessa enrascada por culpa de sua desobediência. João não aguenta ver aquele garimpeiro imundo esganando a pobre menina na frente de seus irmãos prestes a terem uma vida de escravo como a dele, porém ainda pior, nas minas, e vira o rosto. Contudo, ele ouve vozes, incessantes, como se vindas de cada árvore, planta e animal ao seu redor... Vozes que os missionários o ensinaram a ignorar, mas que agora gritam com toda força! O jovem arrebata um pesado galho caído a seu lado e furiosamente atinge a cabeça do garimpeiro, que rola pelo chão estrebuchando de dor enquanto seu sangue quente se esvai.
You goddamn traitor! ‒ esbraveja William, sacando seu facão e partindo em direção ao jovem agora mais metuktire do que nunca.
O galho é pesado demais para atacar ou mesmo se defender dos poderosos golpes do missionário norte-americano, que brande a arma branca com notável habilidade, ferindo o braço do jovem intérprete, que deixa o galho cair, atingindo seu tórax logo em seguida.
We’ve brought you faith! We’ve brought you civilization! And look what you did to us! ‒ vocifera William, prestes a desferir o golpe de misericórdia, quando uma seta acerta sua testa em cheio.
João olha para trás, de onde veio a flecha, e identifica um grupo de caçadores menkranoti, que ouviram os gritos desesperados de Yara e vieram em seu socorro.
‒ Djãm amex? ‒ pergunta o arqueiro.
As crianças anuem, aliviadas.
‒ Jãnh ne gar mõ? ‒ pergunta outro caçador, tentando entender a situação.
‒ Onij ngôtyktikurũm ne bar mõ. Ar ije tep o idjàbirmã ne bar mõ... ‒ começa a explicar Amex o que aconteceu.

...

‒ Agora você tem um lar e um novo nome: Tàkàk! ‒ pronuncia a sorridente avó das crianças fazendo curativos nas feridas do jovem metuktire. ‒ Tal qual o festival que se inicia hoje e que terá um significado especial: o retorno das nossas crianças e do bravo guerreiro que as salvou!
As crianças se sentam ao redor do jovem, sorridentes por terem se livrado da morte certa na mão dos temíveis Kuben Kakrit. Elas hoje aprenderam uma grande lição e viveram uma história que hão de contar por gerações e gerações: sobre como o mal pode se manifestar de diversas formas e como nas adversidades, quando tudo parece perdido, a união prevalece e nos traz ajuda de onde menos esperamos.
‒ Meykomré... ‒ agradece Tàkàk, com lágrimas nos olhos. ‒ Meykomré...





07.10.16

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