A palavra “preconceito” por si só
já traz uma carga negativa. Ninguém diz “quando eu crescer, quero ser
preconceituoso como o meu pai” ou cola no para-brisa traseiro do carro “eu tenho
orgulho de ser preconceituoso”. Quem tem preconceito (e quase todo mundo tem) o
esconde, e, se deflagrado em público, pode até ir para a cadeia, se for
enquadrado como racismo ou homofobia. Por sinal, preconceito e racismo já meio
que viraram sinônimos, muitas vezes amalgamados como “preconceito racial”. Mas
há um preconceito muito comum e que quase ninguém percebe. Um preconceito conveniente
para a sociedade, que alcança praticamente todos os seres humanos, que está
embutido no senso comum em todos os estágios e em todos os momentos das nossas
vidas. Algo tão natural que é considerado inerente ao ser humano e até é
utilizado pela natureza como artifício de sobrevivência. Esse preconceito é tão
destruidor e corrosivo quanto qualquer outro, ou mais, justamente por ser tão
difundido e aceito. Ainda não sabe a que me refiro? À beleza, naturalmente.
A beleza determina a relação
entre os seres humanos e a sua interação com o resto do mundo. É o que norteia
a nossa percepção das coisas, que nos afasta ou aproxima de pessoas, animais e
objetos inanimados. A primeira frase pronunciada por um ser humano, segundo a
cosmogonia Macuxi, uma tribo indígena do Amazonas, logo após ser criado, foi “Como
é tudo bonito para mim!”. Isto dá uma ideia de como é natural considerar o que
é belo como bom, e, consequentemente, o que é feio, como ruim. Você, que está
lendo este texto, há de convir que isso é algo incutido em nossas mentes desde
sempre. A ideia de escrever este texto já estava sendo maturada na minha cabeça
há um certo tempo, mas a gota d’água veio na noite de hoje, navegando por blogs
e sites de humor, que podem ser considerados bobagem, mas que para mim refletem
muito do senso comum e do que as pessoas pensam da vida e coisas do cotidiano.
Muitos sites de imagens engraçadas também tem imagens eróticas, com mulheres
lindas (isso, mulheres, ainda vivemos num mundo machista) e frases como “ô lá
em casa!” ou “eu casaria com ela fácil-fácil”, entre outras afins. Ora, a
beleza é um dos fatores principais que atraem dois seres humanos, quiçá o fator
principal para os homens em busca de uma parceira, até aí tudo bem, não? Quem nunca se apaixonou por
alguém à primeira vista, ou se sentiu fortemente atraído(a) por alguém apenas por
sua beleza, através de algum contato visual, por mais breve que seja? Nada mais se conhece sobre o
objeto de sua atração. Você não sabe nada sobre os gostos da pessoa que te
atrai tanto, o que se passa na sua cabeça, sua história de vida, seus
interesses, dúvidas, pontos fortes e fracos. Essa pessoa pode ser uma assassina
em série, sofrer de algum distúrbio psicológico ou simplesmente ser
desagradável, ter o comportamento que você odeia em outras pessoas, ou seja,
ela pode ser tudo o que você mais detesta, mas, por ter um rosto e um corpo
bonitos, é até possível que você ultrapasse todas essas barreiras para estar
junto com essa pessoa. Por outro lado, ela pode ser uma pessoa maravilhosa, ter
ideias geniais e uma história de vida fascinante, mas, por não ser considerada
bela, é detestável e ignorada na maioria das situações, pela maioria das
pessoas. É quase que um senso comum de que se não se tem beleza, deve-se vencer
na vida pela inteligência, de que a beleza é fundamental em praticamente
qualquer momento da vida de uma pessoa. Disso se movimenta a indústria mundial
de cosméticos e moda, da incessante vontade das pessoas de parecerem mais
bonitas do que são, de não parecerem feias. Ninguém quer ser feio. Paradoxalmente,
dificilmente há numa sociedade mais pessoas consideradas “bonitas” do que “feias”.
Mesmo na Rússia ou no Brasil onde muitos acreditam que vivem as mulheres mais
bonitas do mundo, países onde eu vivi, eu acho que a população “feia” é
desproporcional em relação à “bonita”, ainda que essa relação flutue de acordo
com o poder aquisitivo da população avaliada, de sua origem social, de sua
capacidade de se vestir melhor, de cuidar de sua beleza, de comer bem e cuidar
de sua saúde. Quantos tem condições de fazer isso tudo, e bem? Poucos. Ainda assim, ser bonito é
fundamental, é elogio, é ter sorte na vida. Ser feio é sinal de dificuldades, é
indesejável, é insulto. Então eu pergunto: qual é a diferença entre detestar ou
sentir nojo de uma pessoa apenas por sua feiura, segundo os padrões de sua
sociedade, ignorando sua personalidade e idiossincrasias, do preconceito racial
ou sexual?
Considerar alguém inferior, indesejável, asqueroso, por ser feio é mais
aceitável que fazê-lo baseando-se na cor da pele ou orientação sexual da vítima?
Na minha vida já me enganei
várias vezes com beleza. O que me atraía num momento inicial logo me levava à
repulsa posterior, quando conhecia mais a pessoa com quem lidava. Via que, por
mais que eu me desse conta de que essa pessoa é estúpida, pobre de espírito,
escrota ou egoísta, eu ainda assim não podia deixá-la, afinal, tudo isso era equilibrado
pela sua beleza estonteante. Da mesma forma, tão latente quanto é o preconceito
da beleza é o racial ou qualquer outro tipo de preconceito, constantemente
chamado de estereótipo. É ter mais medo de um negro que anda logo atrás de você
na rua, na calada da noite, do que de um branco. É achar que um branco não
entende o que é preconceito ou não entende o que é ter dificuldades na vida. É
como achar que lugar de mulher é na cozinha, fazer piadas de gays ou criticar
alguém por sua crença ou lugar de origem. Gostar de alguém só por sua beleza ou
desgostar de alguém só por sua feiura, na minha opinião, é tão preconceito
quanto qualquer um dos exemplos acima. E o que é o preconceito senão a máscara
do ignorante?
Preconceitos e estereótipos são, primeiramente, originados da ignorância
daquele que os aplica. Quando alguma pessoa me diz que Belarús, o país da minha
esposa (erroneamente chamado de “Bielorrússia” aqui no Brasil) é a mesma coisa
que Rússia sem conhecer praticamente nada sobre o país dela nem sua história e
cultura, ou que certos países são “a mesma coisa” apenas por ficarem perto um
do outro ou ter quaisquer traços em comum, eu me vejo diante de uma pessoa que
acha que sabe do que está falando, apenas isso. A diferença entre o indivíduo
ignorante e o preconceituoso é que o ignorante apenas desconhece um assunto,
sem tomar nenhuma posição. O preconceituoso toma, pois acha que sabe do
assunto, e esse problema é agravado sobretudo quando a pessoa acha que sabe
tanto que ela não tem o que aprender. Não importa, você pode citar exemplos de
países vizinhos, cultural, geografica e politicamente falando, que se
antagonizam, como os módicos Brasil e Argentina, as severas Sérvia e Croácia, e
as alarmantes Coreia do Norte e Coreia do Sul, mas ainda assim pessoas
ignorantes acham argumentos tão ignorantes quanto, para continuar na sua plácida
ignorância, que muitas vezes mais mal faz a elas mesmas do que à aqueles que se
deparam com ela, porque a pior desgraça que pode acontecer a tais pessoas é permanecer
exatamente como são. Fica a dica para derrubar argumentos tolos de pessoas
assim, basta usar a seguinte pergunta: “E o que você sabe sobre isso?” – funciona na maioria das vezes.
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