Eis que naquela tarde do dia de natal-que-não-era-natal, numa rua qualquer, um jovem ia correndo, ansioso, ao seu tão esperado encontro. A viagem havia sido árdua, muita coisa havia acontecido, mas ele acreditava estar convicto das escolhas que fez, acreditava estar fazendo o que seu coração mandava. Fazia frio, mas ele se sentia tão animado e vibrante que sentia calor, naqueles 20 graus abaixo de zero. Tanto que ele tirou seu casaco e seu suéter, correndo como louco sobre a neve, tão contrastante com a cor da sua roupa e da sua pele, apenas de jeans e camiseta.
Mas o encontro tão esperado deu lugar a outro totalmente inesperado. Num inaudível som de uma pancada seca, todos aqueles pensamentos que fervilhavam na cabeça dele entraram em colapso. Toda aquela ansiedade e excitação deram lugar a uma perplexidade mórbida. A queda de seu corpo rumo à espessa camada de neve à beira da calçada passou como o breve instante de uma eternidade. Foi o suficiente para ver – mas não para acreditar nos seus próprios olhos – quem lhe havia golpeado em pleno tórax. Um golpe que parecia haver-lhe parado seus batimentos cardíacos por um instante, um verdadeiro choque, que lhe pareceu a ruptura de uma realidade frente a outra. Os presentes em sua mochila, trazidos de um lugar distante, foram comprimidos com o peso de seu corpo caindo sobre eles. Ainda sem saber exatamente o que aconteceu, tão repentina e inesperadamente, o jovem tentou erguer-se perante seu imóvel agressor desconhecido, num misto de pavor e perplexidade. Ainda erguendo-se, ele mirou seu agressor e sua aparência era chocantemente semelhante à sua, mas havia algo de diferente.
Ele usava um casaco e um gorro totalmente estranhos para aquele país, aliás, para aquele continente. Eram andinos, aparentemente de alpaca, de cor cinza, com motivos negros de origem inca. Tinha um colar também, feito de contas graúdas e negras como a cor de seus olhos e sua barba. Seu semblante era de um jovem cansado, vívido e exausto ao mesmo tempo, e, pelas suas vestes, deveria estar com frio, mas seus olhos tinham tamanha serenidade que só não era confundida com pura frieza por causa do brilho em seu olhar. Finalmente levantando-se, o jovem não conteve seu espanto diante daquele estranho ser e, balbuciando em algum idioma, perguntou-lhe quem era. O jovem em trajes andinos respondeu-lhe: “Eu sou você amanhã”.
II
Após o choque inicial, o futuro apresentou-se ao passado, e explicou-lhe a que veio, mas não como. O futuro disse-lhe “Eu vim te salvar do momento que estava prestes a acontecer se não fosse a minha intromissão. O encontro aonde você estava indo será a porta de entrada para um mundo de ilusão e sofrimento inimagináveis que eu tenho a certeza de que você não vai querer sentir. Digo isso por experiência própria”.
Incrédulo, aguerrido ao apego que sentia, o passado não compreendia nem queria compreender o que o futuro lhe dizia: “Mas eu vim de tão longe para chegar aqui, eu lutei tanto para que isso acontecesse, eu rezei tanto, foram tantas noites, tantos quilômetros, tantas palavras e sentimentos... Não posso desistir agora. O que farei da minha vida se eu simplesmente abrir mão de tudo isso?” E o futuro explicou-lhe: “A felicidade e a auto-realização, o sentimento de ser um ser completo vem, antes de tudo, de si mesmo, do interior. Se você depositar sua felicidade e realização em algo externo, inexoravelmente se condenará a perdê-lo um dia, porque o que é alheio está fora do nosso controle. O nosso ser, a nossa alma, esta sim deve estar completa em si mesma, e então você se tornará um ser pleno, inalcançável. Digo isso, por experiência própria”.
Continuando, o futuro disse: “Este ser diante de seus olhos é o resultado das ações que você ia desencadear neste momento, não fosse a minha intervenção. Desde este exato momento estou fadado a desaparecer, já que este encontro irá mudar o futuro e tudo o que me moldou do jeito que sou agora, mas é o preço que tenho que pagar. Escute-me: o amor que você tem por este lugar, por esta pessoa que você vai encontrar em instantes, é algo muito nobre e belo, não deixe que isto se torne um apego destruidor que pode arrasar a sua vida. Acredite não só nos seus sentimentos, mas também na sua razão. Observe o campo e os acontecimentos ao seu redor e saiba que o mundo é muito maior do que isso, pleno de outras possibilidades, e é muito, muito importante que você conheça a si mesmo para que toda essa engrenagem funcione. Discorde. Desvencilhe-se. Desobedeça. Não atenha-se demais ao problema para encontrar a solução. Busque-a do lado de fora. Eu sei que parece confuso, mas um dia você entenderá...” E, ao falar isso, o futuro começou a desaparecer, a virar um espectro cada vez mais tênue, com um semblante pesaroso, quase em prantos, com um olhar distante de quem se lembra de algo muito doloroso... Mas, em seus últimos momentos, diante de um passado perplexo, ele sorriu gentilmente, tirou seu colar e o entregou nas mãos do passado, dizendo-lhe: “Este é um colar Emberá. Lembre-se disto” e se foi. Ao tocá-lo, o passado entrou num transe momentâneo. Uma torrente de pensamentos e imagens veio-lhe à mente, pensamentos que o remetiam a um futuro não tão distante, mas assombroso.
Passado e futuro já não mais existiam como entidades distintas, conjurando-se então num único corpo trans-temporal, capaz de controlar seu destino e de dominar e compreender as conseqüências de seus atos.
III
O jovem finalmente chegou ao seu encontro final. O Universo havia conspirado para que aqueles dois seres se encontrassem, enfim, mas as conseqüências, agora, seriam outras. Após a euforia inicial, meses à frente foram definidos em alguns longos minutos de conversa. Longos minutos estes bastantes para que o jovem desse conta de si mesmo e do grande erro que estava cometendo, da loucura que haveria de abater-se-lhe a partir de então, da prisão que construiria em torno de si mesmo. Mudo, ele a deixou em prantos e partiu. A partir daí, um novo futuro seria forjado. A partir daí, novas possibilidades se abririam. Novas variáveis entrariam em campo e para tal, não havia eu futuro que lhe viesse explicar, mas agora, ele tinha um conhecimento e sabedoria transcendentais, que o tornavam como um navio impávido atravessando calmamente um mar tempestuoso. Cálidos foram os braços de quem o recebeu e que o viu partir mais uma vez, rumo ao desconhecido.
Enquanto isso, em algum lugar do Oceano Pacífico...
--