quarta-feira, 15 de maio de 2013

Impressões de um brasileiro na Rússia

  
1. A Rússia é uma federação multicultural e multiétnica, com centenas de povos, sendo o russo eslavo apenas uma dessas etnias (e a mais populosa).

2. “Russo”, na língua russa, tem duas denominações. “Russkiy”, o russo eslavo, parente do polonês, do ucraniano, etc. e “Rossiyanin”, cidadão russo de qualquer outra etnia, como os chechenos, por exemplo.

3. Teoricamente um “russkiy” também é “rossiyanin”, mas na prática os primeiros, em grande parte, odeiam os segundos. O racismo é escancarado na Rússia, principalmente direcionado aos povos do sul, como chechenos e daguestaneses, podendo se estender a outros povos da antiga URSS, como tadjiques e azeris (veja mais sobre isso em http://www.youtube.com/watch?v=vgvOCMhm-CY). Curiosamente, negros, por serem poucos, não são mal vistos lá, sendo até exóticos, embora haja uma quantidade absurda de skinheads e grupos neo-nazistas (ironicamente foi a URSS que destruiu a Alemanha Nazista, sua maior inimiga) que também atacam negros e asiáticos.

4. Tais conflitos étnicos são mais comuns nas grandes cidades – Moscou e São Petersburgo – para onde gente de toda a Rússia e antiga URSS vai em busca de trabalho e melhores condições de vida. Foi o caso da família da minha esposa, que imigrou da vizinha Belarús, para Moscou, fugindo da crise econômica e da ditadura de Lukashenka.

5. Em Moscou tudo é muito caro, e o salário não é necessariamente bom, por isso, para se manter, tem que trabalhar muito. Só o aluguel do apartamento onde morávamos, um quarto e sala no subúrbio, era de R$ 2000 por mês. Não é à toa que muita gente que tem apartamento em Moscou, o aluga e vai morar fora, na Indonésia, por exemplo.

6. No interior, o custo de vida é bem menor e as pessoas são bem menos estressadas e mais gentis.

7. Viajar pelo país é relativamente barato. Os trens são muito eficientes e confortáveis, para todos os gostos e bolsos. Trechos como Moscou – São Petersburgo podem custar dos 25 aos 700 reais, ida.

8. Apesar do seu tamanho descomunal, a Rússia é bastante homogênea - herança da era soviética, que queria padronizar tudo, inclusive o idioma, que quase não tem sotaques regionais, a não ser em zonas rurais ou por falantes de russo como segunda língua. Uma pessoa de Kaliningrado, na fronteira com a Polônia, fala igual a uma pessoa de Vladivostok, pertinho do Japão. Os prédios residenciais são quase todos idênticos, porque os soviéticos acreditavam ser mais fácil copiar o mesmo modelo para todas as cidades, em grande escala.

9. O bilingualismo é forte em certas regiões da Rússia, como no Tatarstão, onde praticamente tudo está escrito em russo e tártaro. Entretanto, lamentavelmente, muitas outras línguas estão em perigo de extinção, como o kareliano, falado na Karélia, território que fazia parte da Finlândia.

10. A Rússia é dividida em vários tipos de unidades federadas, dependendo de sua autonomia. Há repúblicas, onde há concentração de povos que falam suas próprias línguas e professam suas próprias religiões, como o muçulmano Tatarstão, que dominou a Rússia durante séculos, a budista Calmúquia e a animista Ossétia do Norte. Depois vem os “ôblast”, que se assemelham ao nosso conceito de estado, os “krai”, que literalmente significa “limite”, formam fronteiras históricas da Rússia, os “okrug” que podem ser autônomos ou não, e os distritos federais de Moscou e São Petersburgo, antiga capital imperial. 

11. Há uma rixa entre Moscou e Piter (como os russos em geral chamam São Petersburgo) semelhante à existente entre Rio e São Paulo, sobretudo em tópicos culturais e políticos. A maioria dos russos gosta mais de Piter do que de Moscou, talvez por causa do estereótipo de que moscovitas se considerem superiores ao “resto” da Rússia. Curiosamente é raro achar alguém em Moscou que realmente seja de Moscou.

12. Apesar do alcoolismo ser um problema grave na sociedade russa, há muitos russos que não bebem. É proibido beber na rua e é probida a venda de bebidas alcoólicas depois das 23h. Até a venda de álcool hospitalar é proibida, sendo necessário trazer receita para comprar um frasco de 100ml. Por ter acesso a álcool hospitalar, é muito comum ver médicos alcoólatras.

13. Na Rússia não há a cultura do barzinho, como no Brasil. Lá tavernas são poucas e caras, assim, é muito comum ver gente bebendo na porta dos mercadinhos, nas esquinas, em parques ou no “pod’iezd” – espaço que vai desde a entrada até as áreas comuns dos prédios, sempre de olho na polícia, que quando aparece, pede propina. Ironicamente, vodka é uma moeda comum de suborno.

14. Muitas dessas pessoas que bebem na rua, escondidas, são chamadas de “gôpniki”, da sigla para “Abrigo Estatal do Proletariado” (GOP, em russo), originalmente localizado em São Petersburgo, nos tempos da revolução, uma espécie de Cidade de Deus russa. Os gôpniki são jovens geralmente vistos agachados nas esquinas de prédios e parquinhos, comendo sementes de girassol, usando versões falsificadas de roupas esportivas da Adidas, Nike, Puma, etc, e frequentemente com o olho roxo ou outros sinais de briga pelo corpo. Eles em geral pedem “emprestado” seu celular, boné ou qualquer outro objeto de valor, podendo ser perigosos.

15. Outros tipos perigosos russos são os torcedores de futebol, que quase sempre são neo-nazistas e odeiam minorias étnicas russas e estrangeiros de aparência não europeia. Entretanto, eles adoram brasileiros, então se você topar com um grupo de neo-nazistas, basta falar “iá iz Brazílii” (eu sou do Brasil) que logo todos sorrirão e te chamarão para beber cerveja e assistir algum jogo do Zenit (time de São Petersburgo), Spartak (de Moscou) ou algum outro do gênero. Militares em geral são tão cabeça-oca quanto, especialmente os paraquedistas da aeronáutica (vdvshniki), que comemoram seu dia, 2 de agosto, nadando em fontes na rua, bebendo vodka e procurando algum “tchurka” ou “ratch”, como eles chamam os migrantes do Cáucaso e da Ásia Central, para bater.

16. Mesmo assim, a Rússia ainda é um país muito mais seguro do que o Brasil, sendo Moscou, considerada a cidade mais violenta do país, um paraíso comparada aos índices de criminalidade das cidades brasileiras.

17. O tabagismo é um problema quase tão grave quanto o alcoolismo. Na Rússia só agora estão tentando impedir o fumo em espaços fechados e as áreas para não-fumantes frequentemente tem cheiro de cigarro. Drogas ilícitas como maconha e cocaína são utilizadas em escala muito menor que no Brasil, sendo que o narcotráfico não é um problema grave no país.

18. O atendimento russo é um dos piores que já vi, sobretudo em cidades grandes. Isto se deve talvez ao fato de que a economia soviética era muito pouco competitiva e os funcionários não se esforçavam para atender melhor, porque o salário vinha do estado de qualquer forma, ou seja, na prática, a URSS era uma imensa repartição pública, somado à grande quantidade de pessoas com nível superior completo (analfabetismo é inexistente na Rússia), número que não corresponde com as necessidades do mercado de trabalho e gera profissionais frustrados e insatisfeitos por trabalhar numa área que não condiz com sua formação, como engenheiros trabalhando como garçons ou médicos trabalhando como vendedores.  Com a chegada do capitalismo, no entanto, o serviço continua péssimo mas agora custa muito mais caro.

19. A corrupção é um problema tão grave lá quanto aqui. A burocracia lá chega a ser pior do que aqui, o que quase institucionaliza o suborno e a sonegação em todas as esferas.

20. Russos tem dois passaportes, um doméstico, obrigatório a todos, e um para viagens ao exterior, facultativo.

21. Nesse passaporte doméstico fica a “propiska” (lê-se “prapiska”). Consiste num registro do lugar onde a pessoa mora. Qualquer mudança que essa pessoa fizer, deve ser devidamente registrada pelas autoridades. Sem propiska, o cidadão corre o risco de ser ilegal dentro do seu próprio país. Exemplo: se você tem propiska em Novossibirsk mas mora em Moscou, corre o risco de não poder trabalhar, estudar nem receber atendimento médico lá.

22. Para estadias superiores a 3 dias em qualquer cidade na Rússia é necessário fazer um registro, indicando seus dados, onde você está hospedado e os dados do hospedeiro, que tem que ter propiska no local. É comum ver policiais pedindo documentos a pessoas que eles julgam não parecer locais (principalmente do Cáucaso e Ásia Central) para ver se elas estão com o registro em ordem. É muito comum falsificá-lo também, existindo empresas clandestinas especializadas nisso.

23. O clima na Rússia de um modo geral é extremo: verões muito quentes e invernos muito frios. Eu peguei de 40 graus positivos a 40 graus negativos. As estações são muito bem definidas, o que se reflete nas roupas, que variam com a estação não apenas por questão de moda, como na maior parte do Brasil, mas por necessidade.

24. Existe uma variedade enorme de palavras em russo para frio e roupas de frio.

25. A Rússia é um país rico em recursos naturais, como gás e petróleo, sendo a grande exportadora de gás para os países europeus. O aquecimento domiciliar é muito bom, sendo possível dormir de cueca em casa enquanto faz 40 graus abaixo de zero na rua.

26. É muito comum tomar chá, especialmente no inverno. Existe uma enorme variedade de sabores e mesmo depois de voltar ao Brasil eu continuo com o hábito de tomar chá diariamente.

27. Russos são muito supersticiosos, sobretudo no que se refere a dinheiro. Eles acreditam que não se pode assoviar dentro de casa, porque faz perder dinheiro. O mesmo para dar dinheiro nas mãos de outra pessoa; deve-se deixar a quantia em algum local, para que a própria pessoa pegue (o mesmo se faz dando propina. Coincidência?). Nos supermercados isso é bem visível, nunca a caixa vai te dar dinheiro na mão, tendo uma bandejinha de plástico específica para isso. Ver um gato preto ou passar por debaixo de escada e quebrar um espelho também são sinais de azar lá.

28. É feio apertar a mão de alguém usando luva, por mais frio que esteja. Também deve-se deixar o sapato na entrada de casa, onde há um cubículo feito para isso, onde também se deixam as roupas de inverno. Nunca se deve saudar a alguém no batente da entrada de casa. Segundo a crença, é no batente da entrada que moram os antepassados da família. Ao botar o pé fora de casa e ter que voltar por algum motivo, é necessário se olhar no espelho, senão dá azar. Ao viajar, antes de sair de casa, é de praxe sentar-se um pouco, com as bagagens, para ter boa sorte. Isso realmente ajuda a lembrar-se de algo que esteja faltando.

29. Ao contrário do que muitos pensam, russos quase nunca falam “nazadorovie” ao beber vodka. Eles brindam cada vez por algo diferente, em geral, começando pelo encontro, depois pelos parentes, pelo amor, e por aí vai. É considerado descortês não aceitar ao menos um gole.

30. A culinária russa é cheia de pratos das mais diversas origens. Ao visitar alguma família russa, é muito provável que lhe ofereçam, junto com a vodka (afinal russos nunca bebem sem aperitivo) salada, de vários tipos e sabores, quase sempre muito gostosas; “buterbrod” pão preto fatiado, com salame, queijo, picles, ou algo do gênero e até mesmo caviar, em geral vermelho, mais barato. É muito comum também o piel’miêni, uma espécie de ravioli russo, sopas, como o borsch, uma sopa ucraniana à base de beterraba, também muito famosa, com a receita variando de acordo com cada família. Aliás, é muito comum tomar sopa no almoço, sendo muito comum colocar um creme de leite azedinho chamado “smietana”, que se acha em todo lugar. Batata cozida com almôndegas também é muito comum, sobretudo nas residências estudantis. Na rua o que mais se come é a “chaurmá”, uma espécie de churrasco grego de origem asiática, e o “tcheburiêk”, idêntico ao nosso pastel. As porções russas em geral são pequenas, comparadas às nossas, e eles não gostam de misturar comida no prato, comem tudo separadinho.

31. Cobradores de ônibus/bonde quase sempre são mulheres. E sofrem muito, porque raramente os ônibus de lá tem catraca: entram todos os passageiros de vez e a coitada, que, obviamente, está sempre mal-humorada, tem que correr atrás dos passageiros para que eles paguem a passagem. Ao pagar elas te dão um bilhetinho, com uma numeração, em geral de 6 algarismos. Quando a soma dos 3 primeiros é igual à soma dos 3 últimos (exemplo: em “151322” 1+5+1 = 7 e 3+2+2 = 7, ou seja, as duas somas são iguais a “7”), esse bilhetinho é considerado “da sorte” (schastlivy biliet), que você deve comer e fazer um pedido.

32. O transporte público na Rússia, herança do socialismo, onde carro privado era luxo, é muito eficiente, tendo linhas de ônibus, vans (legalizadas), bondes e, se a cidade for grande, metrô. O tempo de espera no ponto é mínimo, e todos eles (com exceção das vans) tem aviso sonoro e aquecimento, tudo pensado nas duras condições do inverno, que congela as janelas e torna a espera no ponto de ônibus um suplício. Taxi só chega agendando com a central telefônica e especificando o endereço para busca no GPS. Só há uma bandeira e os carros raramente tem taxímetro ou qualquer tipo de identificação externa. As corridas são, em geral, (bem) mais baratas que no Brasil, mas eles adoram dar golpe em turista, aplicando preços exorbitantes, principalmente indo ou vindo para o aeroporto, que em geral se localiza muito longe do centro.

33. O segredo da beleza russa é a maquiagem. As russas são muito vaidosas e quase nunca ousam sair de casa sem se maquiar primeiro, aonde quer que vão. Sempre procuram se vestir bem e se preocupam com a aparência. O padrão de beleza é o anoréxico, sendo um insulto seríssimo dizer a uma russa que ela tem um bumbum grande, o que é o mesmo que chamá-la de gorda. As periguetes de lá não se importam com o frio, chegando a sair de minissaia e salto alto com temperaturas de 40 graus abaixo de zero e montanhas de neve. Toda essa preocupação geralmente tem um objetivo: achar um marido rico. As russas casam muito cedo, em comparação às brasileiras, que muitas vezes nem se casam, e, geralmente, com algum cara que possa bancá-las.

34. Russos em geral são frios com desconhecidos, principalmente em espaços públicos. As russas, que muitas vezes usam quilos de maquiagem e se produzem como se fossem à cerimônia do Oscar, quase sempre andam de cara feia, a menos que você esteja numa BMW ou numa Mercedes, de preferência com um iPhone 5 na mão. Depois do primeiro contato, eles tendem a se abrir mais, e aí você pode fazer grandes amigos(as).

35. Russos em geral são puritanos: eles não tem equivalentes para “periguete” nem “ficar”, e agem como se essas coisas lá não existissem. Porra nenhuma! Lá o que mais tem é periguete, que ficam com Deus e o mundo nas baladas. Russos também acham muito feio falar palavrão, sobretudo na frente de mulheres mas em russo existe uma sub-língua inteira só de palavrões, chamada de “mat”. Mat baseia-se em 3 palavras-raízes, sendo elas “rui” (caralho), “pizdá” (buceta) e “iebat’” (fuder), que, através de afixos podem gerar uma infinidade de palavrões inimagináveis com os mais diversos significados, e mesmo a mocinha mais angelical que você conhecer vai saber a maioria deles.

36. Devido ao antigo calendário juliano, alguns feriados do calendário russo são comemorados em datas diferentes das nossas, ou até mais de uma vez, sendo uma no atual calendário gregoriano, e outra no antigo calendário juliano, como o ano novo e o ano novo velho, comemorado na noite do dia 13 a 14 de janeiro. Pelo mesmo motivo o natal é comemorado dia 7 de janeiro, sendo 25 de dezembro um dia como outro qualquer. Páscoa também é comemorado depois da páscoa católica. O maior feriado russo é o ano novo, que mistura características do nosso natal. Como na União Soviética religiões eram proibidas, a árvore de natal virou árvore de ano novo e o Papai Noel é o velho Ded Moroz (algo como “vovô friozão”, em russo) que traz presentes na noite de ano novo. Os 10 dias seguintes ao ano novo são um mega-feriadão em que quase ninguém trabalha e todo mundo enche a cara de vodka e come salada em casa. É também uma época muito fria do ano, em que o Sol aparece muito pouco. Devido à grande quantidade de fuso-horários na Rússia, é comum celebrar o ano novo no horário local onde se está, mais o de Moscou, sendo que os mais pinguços ainda comemoram de outras regiões.

37. Casamento é uma enorme indústria na Rússia, sobretudo em Moscou, onde quase todo dia se veem limusines passando com noivos gritando aos quatro cantos (principalmente a noiva, quase sempre bêbada) indo festejar em algum restaurante caro. A tradição é semelhante à nossa, mas casamentos na igreja são mais raros lá, por influência do passado soviético recente, onde não se podia casar na igreja. Como casamento na igreja é considerado algo mais sério (e seguido pelos casais mais religiosos), alguns casam lá anos depois do do civil, realizando uma espécie de “segundo casamento”.  Os cartórios fazem bem esse papel, no entanto, sendo o casamento civil uma cerimônia bem mais pomposa lá do que nos cartórios brasileiros.

38. A noção de “democracia” na Rússia é bem diferente da nossa. Lá não existem eleições para prefeito nem governador, sendo eles nomeados pelo presidente, sem mandato definido. Só para você ter uma ideia, Yuri Luzhkov, prefeito de Moscou durante 18 anos consecutivos, só saiu do cargo porque brigou com o então presidente Medvedev. Praticamente só há eleições para presidente e primeiro ministro, e aí já viu, Putin manda no país há mais de uma década, fazendo troca-troca com Medvedev. Belo exemplo de democracia.

39. Se você pretende viajar para a Rússia, é bom aprender pelo menos o alfabeto cirílico, porque lá é difícil achar alguém que fale inglês ou ver letreiros com tradução em inglês ou com transcrição para alfabeto latino, pelo menos.

40. É muito comum ver preços mais altos para estrangeiros, principalmente em museus e teatros. Em compensação, a maioria desses lugares tem descontos para estudantes, basta apresentar sua carteira de estudante, pode ser a brasileira mesmo.

41. Nos templos ortodoxos, islâmicos ou budistas quase sempre a entrada é gratuita mas é proibido fotografar (aliás, parece que tudo é probido na Rússia, mas todo mundo faz mesmo assim). Para entrar nos templos ortodoxos, homens devem tirar o gorro ou qualquer coisa que cubra a cabeça, e mulheres tem que usar saia e cobrir o cabelo. Se você é mulher e for de calça (short ou bermuda nem pensar!) é possível que você possa pegar um lenço na entrada da igreja (especialmente se tiver um convento anexo) para enrolar na cintura, fazendo uma saia improvisada. Se estiver menstruada, o que para eles é sinal de impureza, é melhor passar longe então. As igrejas ortodoxas em geral tem uma nave circular, sem bancos e com pinturas de santos ao invés de esculturas. A maioria dos czares e imperadores russos hoje são santos, não importa se eles tenham cometido as piores atrocidades durante seus reinados.

42. Se no Brasil parece que falta infra-estrutura para deficientes físicos, na Rússia é muito pior. Eles praticamente ignoram pessoas com necessidades especiais, sendo difícil achar rampas, avisos sonoros e, sinceramente, não me lembro de ter visto passeios táteis nem braille em lugar nenhum lá. O memorial da Batalha de Stalingrado (dentre outros memoriais e pontos turísticos russos), que foi a maior batalha da história da humanidade, na atual Volgogrado, é um exemplo gritante disso. Eu não conseguia imaginar com os soldados mutilados ou aleijados depois da guerra poderiam fazer para subir a interminável escada que leva até o pavilhão principal, seguido da monumental estátua de 85m de altura da Mãe-Pátria.

43. Falando em exército, o alistamento militar não só é obrigatório e dura 2 anos como se a pessoa for dispensada nesse ano, deve voltar no próximo para se alistar (ou ser dispensada) novamente, até os 27 anos. Servir o exército russo é o maior pesadelo na mente dos jovens russos que fazem de tudo para não se alistarem. Para serem dispensados, eles tentam esticar os estudos ao máximo possível, fazendo graduação, mestrado e até doutorado para não ir pro quartel, ou simplesmente tem filhos, o que garante 3 anos sem servir o exército, por filho. Outros mais abastados pagam fortunas para não serem chamados, enquanto os mais pobres tomam doses cavalares de cafeína e sobem e descem correndo lances inteiros de escada, para elevar a pressão e serem reprovados no exame médico. Alguns, pasmem, são capazes de cortar um dedo, ou de se passarem por gays, que não são admitidos no exército.

44. Aliás, se aqui no Brasil a gente reclama de homofobia, na Rússia é tolerância zero. Parada gay é proibida por lei e os poucos homossexuais militantes que tentam fazê-la levam porrada da polícia e de civis. Recentemente, em São Petersburgo, considerada a capital cultural da Rússia, foi aprovada uma lei que criminaliza a “propaganda homossexual”, ou seja, o simples fato de dizer em público “eu sou gay” é crime. Bom, se você disser isso em português, talvez não vá em cana...

45. Outra característica marcante da sociedade russa é o machismo. Desde a infância, nas escolas, meninos aprendem marcenaria e mecânica enquanto meninas aprendem a cozinhar e costurar. Elas são orientadas desde pequenas a se vestirem e parecem bonitas para os homens e que devem obedecê-los, enquanto eles podem fazer o que quiserem. Homens quase nunca ajudam nas tarefas domésticas e são muito ciumentos. Em compensação, talvez pela frieza do homem russo, eles não cantam ou assobiam para mulheres na rua, coisa tão comum no Brasil.

46. Em termos econômicos, a sociedade russa é mais igualitária que a brasileira, não se notando uma diferença tão grande quanto a nossa entre ricos e pobres. Lá há muito menos miséria e mendigos, até porque é impossível viver na rua com o rigoroso inverno russo. Em compensação, há uma grande concentração de riqueza nas mãos de uns poucos, sendo que Moscou é a cidade com o maior número de bilionários do mundo.

47. A maioria dos russos já esteve, está ou estará alguma vez na vida na Crimeia, um balneário no sul da Ucrânia. Destinos turísticos populares também são Turquia e Egito, que são inundadas de turistas russos beberrões. Para os que tem mais dinheiro, Tailândia e Indonésia são os destinos turísticos mais procurados.

48. Todo russo que se preza tem vk (abreviatura de vkontakte “emcontato” [sic], em russo), uma espécie de facebook russófono com um ótimo sistema de compartilhamento de música e vídeo, que, por sinal, está ficando popular entre brasileiros, e/ou livejournal, um tipo de blog e rede social.

49. Russos adoram adornar títulos de profissões. Se lhe oferecerem uma vaga de emprego como “promoter”, não ache que você vai organizar mega eventos ou trabalhar numa grande empresa, mas sim distribuir panfletos na rua, ou se te chamarem para ser “manager em landschaft” (mistureba do inglês para “gerente” e do alemão para “paisagem”), não vá achando que você vai ser chefe de algum departamento executivo. Balela, isso quer dizer “faxineiro”.

50. Os russos em geral conhecem muito pouco sobre o Brasil, só o basicão: carnaval, futebol, praia, e, aparentemente, nossos maiores produtos de exportação por lá, o café, a carne bovina e as novelas, que por sinal há tempos não passam mais na TV. As mais famosas foram Escrava Isaura e O Clone, cujos personagens ainda habitam as mentes de muitos. Contudo, quando falo a eles que o Brasil é mais rico que a Rússia, sendo a 5ª maior economia do mundo, 5º país mais populoso e 5º maior país por território (4º maior, em área contínua), eles ficam pasmos e pensam que eu estou contando lorota. Por algum motivo eles acham que a maioria dos brasileiros (ou todos, sei lá) são negros, e não acreditam que um branco ou um asiático possa ser brasileiro, embora eles tenham assistido novelas brasileiras, onde negro é mosca no leite. Eles também não fazem ideia de que língua nós falamos, sendo o palpite mais comum “brasileiro” seguido de espanhol. 


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sábado, 23 de março de 2013

O maior dos preconceitos



A palavra “preconceito” por si só já traz uma carga negativa. Ninguém diz “quando eu crescer, quero ser preconceituoso como o meu pai” ou cola no para-brisa traseiro do carro “eu tenho orgulho de ser preconceituoso”. Quem tem preconceito (e quase todo mundo tem) o esconde, e, se deflagrado em público, pode até ir para a cadeia, se for enquadrado como racismo ou homofobia. Por sinal, preconceito e racismo já meio que viraram sinônimos, muitas vezes amalgamados como “preconceito racial”. Mas há um preconceito muito comum e que quase ninguém percebe. Um preconceito conveniente para a sociedade, que alcança praticamente todos os seres humanos, que está embutido no senso comum em todos os estágios e em todos os momentos das nossas vidas. Algo tão natural que é considerado inerente ao ser humano e até é utilizado pela natureza como artifício de sobrevivência. Esse preconceito é tão destruidor e corrosivo quanto qualquer outro, ou mais, justamente por ser tão difundido e aceito. Ainda não sabe a que me refiro? À beleza, naturalmente.

A beleza determina a relação entre os seres humanos e a sua interação com o resto do mundo. É o que norteia a nossa percepção das coisas, que nos afasta ou aproxima de pessoas, animais e objetos inanimados. A primeira frase pronunciada por um ser humano, segundo a cosmogonia Macuxi, uma tribo indígena do Amazonas, logo após ser criado, foi “Como é tudo bonito para mim!”. Isto dá uma ideia de como é natural considerar o que é belo como bom, e, consequentemente, o que é feio, como ruim. Você, que está lendo este texto, há de convir que isso é algo incutido em nossas mentes desde sempre. A ideia de escrever este texto já estava sendo maturada na minha cabeça há um certo tempo, mas a gota d’água veio na noite de hoje, navegando por blogs e sites de humor, que podem ser considerados bobagem, mas que para mim refletem muito do senso comum e do que as pessoas pensam da vida e coisas do cotidiano. Muitos sites de imagens engraçadas também tem imagens eróticas, com mulheres lindas (isso, mulheres, ainda vivemos num mundo machista) e frases como “ô lá em casa!” ou “eu casaria com ela fácil-fácil”, entre outras afins. Ora, a beleza é um dos fatores principais que atraem dois seres humanos, quiçá o fator principal para os homens em busca de uma parceira, até aí tudo bem, não? Quem nunca se apaixonou por alguém à primeira vista, ou se sentiu fortemente atraído(a) por alguém apenas por sua beleza, através de algum contato visual, por mais breve que seja? Nada mais se conhece sobre o objeto de sua atração. Você não sabe nada sobre os gostos da pessoa que te atrai tanto, o que se passa na sua cabeça, sua história de vida, seus interesses, dúvidas, pontos fortes e fracos. Essa pessoa pode ser uma assassina em série, sofrer de algum distúrbio psicológico ou simplesmente ser desagradável, ter o comportamento que você odeia em outras pessoas, ou seja, ela pode ser tudo o que você mais detesta, mas, por ter um rosto e um corpo bonitos, é até possível que você ultrapasse todas essas barreiras para estar junto com essa pessoa. Por outro lado, ela pode ser uma pessoa maravilhosa, ter ideias geniais e uma história de vida fascinante, mas, por não ser considerada bela, é detestável e ignorada na maioria das situações, pela maioria das pessoas. É quase que um senso comum de que se não se tem beleza, deve-se vencer na vida pela inteligência, de que a beleza é fundamental em praticamente qualquer momento da vida de uma pessoa. Disso se movimenta a indústria mundial de cosméticos e moda, da incessante vontade das pessoas de parecerem mais bonitas do que são, de não parecerem feias. Ninguém quer ser feio. Paradoxalmente, dificilmente há numa sociedade mais pessoas consideradas “bonitas” do que “feias”. Mesmo na Rússia ou no Brasil onde muitos acreditam que vivem as mulheres mais bonitas do mundo, países onde eu vivi, eu acho que a população “feia” é desproporcional em relação à “bonita”, ainda que essa relação flutue de acordo com o poder aquisitivo da população avaliada, de sua origem social, de sua capacidade de se vestir melhor, de cuidar de sua beleza, de comer bem e cuidar de sua saúde. Quantos tem condições de fazer isso tudo, e bem? Poucos. Ainda assim, ser bonito é fundamental, é elogio, é ter sorte na vida. Ser feio é sinal de dificuldades, é indesejável, é insulto. Então eu pergunto: qual é a diferença entre detestar ou sentir nojo de uma pessoa apenas por sua feiura, segundo os padrões de sua sociedade, ignorando sua personalidade e idiossincrasias, do preconceito racial ou sexual? Considerar alguém inferior, indesejável, asqueroso, por ser feio é mais aceitável que fazê-lo baseando-se na cor da pele ou orientação sexual da vítima?

Na minha vida já me enganei várias vezes com beleza. O que me atraía num momento inicial logo me levava à repulsa posterior, quando conhecia mais a pessoa com quem lidava. Via que, por mais que eu me desse conta de que essa pessoa é estúpida, pobre de espírito, escrota ou egoísta, eu ainda assim não podia deixá-la, afinal, tudo isso era equilibrado pela sua beleza estonteante. Da mesma forma, tão latente quanto é o preconceito da beleza é o racial ou qualquer outro tipo de preconceito, constantemente chamado de estereótipo. É ter mais medo de um negro que anda logo atrás de você na rua, na calada da noite, do que de um branco. É achar que um branco não entende o que é preconceito ou não entende o que é ter dificuldades na vida. É como achar que lugar de mulher é na cozinha, fazer piadas de gays ou criticar alguém por sua crença ou lugar de origem. Gostar de alguém só por sua beleza ou desgostar de alguém só por sua feiura, na minha opinião, é tão preconceito quanto qualquer um dos exemplos acima. E o que é o preconceito senão a máscara do ignorante? Preconceitos e estereótipos são, primeiramente, originados da ignorância daquele que os aplica. Quando alguma pessoa me diz que Belarús, o país da minha esposa (erroneamente chamado de “Bielorrússia” aqui no Brasil) é a mesma coisa que Rússia sem conhecer praticamente nada sobre o país dela nem sua história e cultura, ou que certos países são “a mesma coisa” apenas por ficarem perto um do outro ou ter quaisquer traços em comum, eu me vejo diante de uma pessoa que acha que sabe do que está falando, apenas isso. A diferença entre o indivíduo ignorante e o preconceituoso é que o ignorante apenas desconhece um assunto, sem tomar nenhuma posição. O preconceituoso toma, pois acha que sabe do assunto, e esse problema é agravado sobretudo quando a pessoa acha que sabe tanto que ela não tem o que aprender. Não importa, você pode citar exemplos de países vizinhos, cultural, geografica e politicamente falando, que se antagonizam, como os módicos Brasil e Argentina, as severas Sérvia e Croácia, e as alarmantes Coreia do Norte e Coreia do Sul, mas ainda assim pessoas ignorantes acham argumentos tão ignorantes quanto, para continuar na sua plácida ignorância, que muitas vezes mais mal faz a elas mesmas do que à aqueles que se deparam com ela, porque a pior desgraça que pode acontecer a tais pessoas é permanecer exatamente como são. Fica a dica para derrubar argumentos tolos de pessoas assim, basta usar a seguinte pergunta: “E o que você sabe sobre isso?” – funciona na maioria das vezes.

 

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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Viagem no tempo



Hoje estava na fila do supermercado, pensando nas merdas que fiz na vida e no quanto eu acho que estou melhor agora, consciente de que eu sempre acho estar melhor no presente do que era no passado, e que provavelmente vou olhar no futuro para o dia de hoje e pensar no quão idiota eu era, e esse pensamento realmente me assombra. Daí olho para a prateleira na minha frente, com revistas das mais triviais, e penso em pegar algo para me distrair e vejo uma revista de jogos com um disco de Unreal Tournament 2003, não citando-o como um jogo antigo e sim como algo revolucionário, que "está desbancando a franquia de Counter-Strike" outro dinossauro daquela época, e esse gerúndio, a ideia que ele transmite, de algo que está em pleno andamento, me deixou pasmo durante alguns instantes. Olho para o lado e vejo a "revista oficial de Pokémon", algo que eu colecionava quando eu tinha uns 12 anos, ali, na minha frente, novinha em folha, dentro do plástico... 

Tentei olhar ao redor, ver algo que me fizesse lembrar que não estávamos em 2003, que já tínhamos passado essa década... em vão. Nesse momento me senti idiota. Idiota como eu me vejo no passado. Eu estava no passado. Uma vaga lembrança me dizia que estamos em 2012, mas a simples ideia de perguntar isso para alguém, para certificar-me de que ano é esse, soava loucura para os meus próprios ouvidos. Eu era o idiota de 10 anos atrás, só que grande. 

Após mais de um ano sem escrever neste blog, é isso que eu trago a mim mesmo, aqui, a ninguém, nada...





quinta-feira, 9 de junho de 2011

Mоё мнение

Я не знаю почему я существую и думаю, что нет ответа на этот вопрос.
А вроде это не такое человеческое поведение искать причины на хаос?

Разве тебе реальность и весь этот мир не кажутся сверх нашего воображения?
Просто я ощущаю, что я бы не мог придумать этот мир, вот моё мнение.

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BG: 13.3

quinta-feira, 12 de maio de 2011

E tudo vai ficar pior

Eu não vejo horizontes nem tenho perspectivas futuras.
Me sinto um ser vazio e a cada dia que passa sinto menos vontade de viver.
Mais agonizante que existir dessa maneira é imaginar que algo aconteça após a morte.
Meu entendimento do Universo e todas as coisas se tornou um monstro assombroso que me condena a uma angústia eterna.
Se ainda me resta alguma esperança é a de que haja realmente algo além da capacidade da nossa imaginação.
Ainda não sou um homem que não tem nada a perder, o que abriria um incrível e insustentável leque de possibilidades e é esse "ainda" que me mantém preso à realidade e me causa uma dor cada vez maior.
Vejo muitas saídas, tudo depende de mim mesmo, só não vejo motivo para sair.
Não vejo mais motivo para nada.

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Escutando Matanza - Em Respeito ao Vício e Dilate - Shapeshifter, às 02:18.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Confronto

I

Eis que naquela tarde do dia de natal-que-não-era-natal, numa rua qualquer, um jovem ia correndo, ansioso, ao seu tão esperado encontro. A viagem havia sido árdua, muita coisa havia acontecido, mas ele acreditava estar convicto das escolhas que fez, acreditava estar fazendo o que seu coração mandava. Fazia frio, mas ele se sentia tão animado e vibrante que sentia calor, naqueles 20 graus abaixo de zero. Tanto que ele tirou seu casaco e seu suéter, correndo como louco sobre a neve, tão contrastante com a cor da sua roupa e da sua pele, apenas de jeans e camiseta.
Mas o encontro tão esperado deu lugar a outro totalmente inesperado. Num inaudível som de uma pancada seca, todos aqueles pensamentos que fervilhavam na cabeça dele entraram em colapso. Toda aquela ansiedade e excitação deram lugar a uma perplexidade mórbida. A queda de seu corpo rumo à espessa camada de neve à beira da calçada passou como o breve instante de uma eternidade. Foi o suficiente para ver – mas não para acreditar nos seus próprios olhos – quem lhe havia golpeado em pleno tórax. Um golpe que parecia haver-lhe parado seus batimentos cardíacos por um instante, um verdadeiro choque, que lhe pareceu a ruptura de uma realidade frente a outra. Os presentes em sua mochila, trazidos de um lugar distante, foram comprimidos com o peso de seu corpo caindo sobre eles. Ainda sem saber exatamente o que aconteceu, tão repentina e inesperadamente, o jovem tentou erguer-se perante seu imóvel agressor desconhecido, num misto de pavor e perplexidade. Ainda erguendo-se, ele mirou seu agressor e sua aparência era chocantemente semelhante à sua, mas havia algo de diferente.
Ele usava um casaco e um gorro totalmente estranhos para aquele país, aliás, para aquele continente. Eram andinos, aparentemente de alpaca, de cor cinza, com motivos negros de origem inca. Tinha um colar também, feito de contas graúdas e negras como a cor de seus olhos e sua barba. Seu semblante era de um jovem cansado, vívido e exausto ao mesmo tempo, e, pelas suas vestes, deveria estar com frio, mas seus olhos tinham tamanha serenidade que só não era confundida com pura frieza por causa do brilho em seu olhar. Finalmente levantando-se, o jovem não conteve seu espanto diante daquele estranho ser e, balbuciando em algum idioma, perguntou-lhe quem era. O jovem em trajes andinos respondeu-lhe: “Eu sou você amanhã”.

II

Após o choque inicial, o futuro apresentou-se ao passado, e explicou-lhe a que veio, mas não como. O futuro disse-lhe “Eu vim te salvar do momento que estava prestes a acontecer se não fosse a minha intromissão. O encontro aonde você estava indo será a porta de entrada para um mundo de ilusão e sofrimento inimagináveis que eu tenho a certeza de que você não vai querer sentir. Digo isso por experiência própria”.
Incrédulo, aguerrido ao apego que sentia, o passado não compreendia nem queria compreender o que o futuro lhe dizia: “Mas eu vim de tão longe para chegar aqui, eu lutei tanto para que isso acontecesse, eu rezei tanto, foram tantas noites, tantos quilômetros, tantas palavras e sentimentos... Não posso desistir agora. O que farei da minha vida se eu simplesmente abrir mão de tudo isso?” E o futuro explicou-lhe: “A felicidade e a auto-realização, o sentimento de ser um ser completo vem, antes de tudo, de si mesmo, do interior. Se você depositar sua felicidade e realização em algo externo, inexoravelmente se condenará a perdê-lo um dia, porque o que é alheio está fora do nosso controle. O nosso ser, a nossa alma, esta sim deve estar completa em si mesma, e então você se tornará um ser pleno, inalcançável. Digo isso, por experiência própria”.
Continuando, o futuro disse: “Este ser diante de seus olhos é o resultado das ações que você ia desencadear neste momento, não fosse a minha intervenção. Desde este exato momento estou fadado a desaparecer, já que este encontro irá mudar o futuro e tudo o que me moldou do jeito que sou agora, mas é o preço que tenho que pagar. Escute-me: o amor que você tem por este lugar, por esta pessoa que você vai encontrar em instantes, é algo muito nobre e belo, não deixe que isto se torne um apego destruidor que pode arrasar a sua vida. Acredite não só nos seus sentimentos, mas também na sua razão. Observe o campo e os acontecimentos ao seu redor e saiba que o mundo é muito maior do que isso, pleno de outras possibilidades, e é muito, muito importante que você conheça a si mesmo para que toda essa engrenagem funcione. Discorde. Desvencilhe-se. Desobedeça. Não atenha-se demais ao problema para encontrar a solução. Busque-a do lado de fora. Eu sei que parece confuso, mas um dia você entenderá...” E, ao falar isso, o futuro começou a desaparecer, a virar um espectro cada vez mais tênue, com um semblante pesaroso, quase em prantos, com um olhar distante de quem se lembra de algo muito doloroso... Mas, em seus últimos momentos, diante de um passado perplexo, ele sorriu gentilmente, tirou seu colar e o entregou nas mãos do passado, dizendo-lhe: “Este é um colar Emberá. Lembre-se disto” e se foi. Ao tocá-lo, o passado entrou num transe momentâneo. Uma torrente de pensamentos e imagens veio-lhe à mente, pensamentos que o remetiam a um futuro não tão distante, mas assombroso.
Passado e futuro já não mais existiam como entidades distintas, conjurando-se então num único corpo trans-temporal, capaz de controlar seu destino e de dominar e compreender as conseqüências de seus atos.

III

O jovem finalmente chegou ao seu encontro final. O Universo havia conspirado para que aqueles dois seres se encontrassem, enfim, mas as conseqüências, agora, seriam outras. Após a euforia inicial, meses à frente foram definidos em alguns longos minutos de conversa. Longos minutos estes bastantes para que o jovem desse conta de si mesmo e do grande erro que estava cometendo, da loucura que haveria de abater-se-lhe a partir de então, da prisão que construiria em torno de si mesmo. Mudo, ele a deixou em prantos e partiu. A partir daí, um novo futuro seria forjado. A partir daí, novas possibilidades se abririam. Novas variáveis entrariam em campo e para tal, não havia eu futuro que lhe viesse explicar, mas agora, ele tinha um conhecimento e sabedoria transcendentais, que o tornavam como um navio impávido atravessando calmamente um mar tempestuoso. Cálidos foram os braços de quem o recebeu e que o viu partir mais uma vez, rumo ao desconhecido.

Enquanto isso, em algum lugar do Oceano Pacífico...


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"Não atenha-se demais ao problema para encontrar a solução. Busque-a do lado de fora."

terça-feira, 23 de março de 2010

(Quando) Este mundo não nos pertence(r)

(When) This world doesn't belong to us

Quando houver uma sociedade justa, de direitos e deveres iguais a todos,

When society will be fair, with equality of rights and duties for all,

Todos os cidadãos tiverem as mesmas oportunidades de educação de qualidade e bons empregos, sendo valorizados por sua capacidade, não por sua aparência ou origem,

When all citizens will have the same opportunities of high quality education and good jobs, being valored by their capacity, not by their look or their origins,

Não existirem analfabetos, filas em hospitais, policiamento ostensivo nas ruas,

No illiterates, no lines in the hospitals, no police patrol on the streets,

Fome, desemprego e violência forem termos caídos em desuso, por não existirem mais tais coisas,

Hunger, unemployment and violence will be terms no longer used, for such things don't exist anymore,

Quando não houver mais lixo, poluição e riscos ao meio-ambiente,

When there will be no more garbage, pollution and risks to the environment,

Quando a humanidade viver em paz e cada ser humano tratar o outro com amor e dedicação pelo seu bem-estar,

When humankind will live in peace and each human being takes care of the others with love and dedication for their welfare,

Nossos olhos não estarão aqui para ver isso.

Our eyes won't be here to see that.

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Ouça o silêncio... / Hear the silence...