domingo, 9 de novembro de 2008

Os danos da reciprocidade

A reciprocidade pode nos levar a agir da maneira que mais detestamos. Quando respondemos a um mau tratamento da mesma maneira, transformamos-nos exatamente no objeto do nosso asco. Isso tem acontecido comigo com freqüência cada vez maior, e quero deixar um registro de sanidade aqui, para lembrar-me no futuro de como eu era. Por Deus, não quero agir como agem comigo, não quero tornar-me assim, mas ao que me parece minha personalidade está se moldando dessa forma.

Eu que sempre era atencioso; quando me chamavam, respondia imediatamente, mas quando eu chamava alguém, familiares, amigos, colegas ou não, estes dificilmente escutavam. Agora, por mais que minha percepção seja excelente, eu me recuso a atender algum chamado. Se alguém me chama, ao me ver passar em algum lugar, internamente eu ouço com tamanha percepção que até dói, mas recuso a responder de primeira. Às vezes até ignoro completamente. Se posteriormente confrontado, finjo que não ouvira. Quando converso com alguém e outra pessoa me chama, não lhe dou ouvidos, embora o poderia fazer de imediato, porque é assim que me tratam, e eu detesto isso, pagando na mesma moeda. Começou sendo recíproco aos que me tratam com desprezo, para mostrar-lhes o quão chato isso é, mas aos poucos fui assimilando esse comportamento no dia-a-dia, e de repente percebi que ajo assim com qualquer pessoa. Meu pai adora falar comigo sobre sua vida, sobre o que fez, o que deixou de fazer, e sobre a vida alheia, de parentes e amigos, o que eu não tenho o mínimo de interesse em saber. Mas quando quero lhe falar sobre mim, sobre alguma experiência ou algo relevante, ele simplesmente não me dá ouvidos. Assim o trato agora, e ao persistir, o trato de maneira irônica, mostrando-lhe o quão inúteis aquelas “informações” são para a minha vida. Pronto, este é o ingresso às vias de fato.

Atenção se torna lentidão, simpatia vira indiferença. A reciprocidade forma uma equação: Se você é atencioso comigo que também o sou, somos recíprocos positivos; se eu sou atencioso com você, e você não o é comigo, eu não te darei atenção, causando assim uma reciprocidade negativa. O caminho da misericórdia é ser atencioso ainda que as pessoas lhe destratem, o que pode ser um teste de paciência e pragmatismo, a fim de levar as pessoas a caírem na real e verem o quão grosseiras estão sendo. O caminho da praticidade é a comunicação, que pode ser a chave para resolver muitos impasses. “Porque você não me ouve?”, “Deixa de ser fdp!”, “Eu não te trato dessa forma”, e por aí vai. Ações devem ser ponderadas, levando a uma conclusão. Ou se chega a um consenso ou ambas as partes se isolam. O importante é que ambas estejam conscientes da situação.


Esse comportamento tem chegado a um nível ainda mais complexo: Ignoro quem me destrata ou não me dá atenção. Eu sou legal, procuro sempre o bem daqueles que me cercam, e costumava ser assim ainda que isso não fosse recíproco, seguir aquele caminho da misericórdia. Hoje não, não me importo mais com nada nem ninguém. Cultuo o desapego, a indiferença. Não sei como estarei a esse respeito daqui a um ano ou mais, e se eu ler este texto, ponderarei. A verdade é que eu sempre quis mudar. Deixar de ser bobo. Quem sabe isso é uma coisa boa, a mudança que eu sempre quis. Se eu estava insatisfeito com o meu comportamento antes, muito provavelmente nada de satisfatório aconteceria se eu continuasse a agir da mesma forma. Seja boa ou ruim, essa mudança me trará resultados novos.

sábado, 1 de novembro de 2008

Verbo

O problema de tudo vem dos verbos. Os verbos limitam, classificam, isolam, apontam características dos seres. Tudo poderia ser absolutamente qualquer coisa sem os verbos, mas não, lá estão eles para dizer que isso é assim e não assado. O poder dos verbos é tamanho que em diversas culturas a criação do mundo e do Universo lhes é atribuída. Afinal Deus disse “Faça-se a Luz!”, e a luz se fez. Justo Deus, ao qual não se podem – ou ao menos não se deveriam – atribuir adjetivos, ligados por verbos. No Sri Isopanisad (um livro hindu), diz-se em determinado capítulo que Deus é Aquele que anda mas não anda; fala mas não fala, é mas não é. Esta é a diferença entre o homem, o mundano, e Deus, o divino: Deus não pode ser limitado por verbos, não se pode dizer que Deus é assim e não pode ser de outro jeito. Deus pode ser tudo, é isso o que O faz Deus, o incompreensível, pois se pudéssemos compreendê-Lo Ele não seria Deus.
Justamente por não poder ser cerceado por limites verbais, Ele encerra em si tudo o que há de bom e de ruim, tudo o que há nos nossos corações, como sua imagem e semelhança. Aliás, Ele é limitado por limites verbais, mas não é limitado por limites verbais.

Gostaria de esquecer do que preciso. Gostaria de esquecer do que gosto. Gostaria de escrever estes versos em prosa. Não depender de conseguir, não depender dos verbos, não dever ser nada. Há duas tragédias na vida: uma é quando não conseguimos o que queremos, e a outra é quando conseguimos.

Odeio o imperativo. É a nossa língua corroborando com a discriminação, a vontade de um sobre o outro. Os pronomes de tratamento também. Vós é mais do que Você. O Senhor, A Senhora, são mais do que Tu. Somos todos iguais, nascemos do mesmo jeito, e assim morreremos. Nada mais sublime do que o poema “O mundo é um túmulo” de autoria atribuída a Nezahualcoyotl (1402-1472), Rei-Filósofo de origem Alcolhua, um dos fundadores do Império Asteca:

O mundo inteiro é um túmulo e nada escapa disso.
Nada é tão perfeito que não desça até sua cova.
Rios, riachos, regatos e fontes fluem, mas nunca retornarão aos seus joviais começos;
Ansiosamente eles seguem para os vastos reinos do deus da chuva.
Assim como eles alargam suas margens, também modelam sua triste urna mortuária.
Cheias estão as entranhas da Terra com poeira pestilenta outrora carne e osso.
Outrora corpos animados de homens que sentaram sobre tronos, decidiram litígios, presidiram conselhos, comandaram exércitos, conquistaram províncias,
possuíram tesouros, destruíram templos, exultaram seu orgulho, majestade, fortuna, glória e poder.
Desaparecidas estão essas glórias, assim como a fumaça amedrontadora expelida pelo fogo infernal do Popocatepetl.
Nada mais os recordará senão a página escrita.


Maxtla que o diga.

__________
Nota: Maxtla era o arqui-rival de Nezahualcoyotl, filho e sucessor de Tezozomoc, rei de Azcapotzalco, reino que subjugou Texcoco, terra de Nezahualcoyotl, quando este tinha 15 anos. Nessa ocasião, Nezahualcoyotl foi obrigado a ver seus pais serem assassinados por soldados de Azcapotzalco. Maxtla foi sacrificado aos deuses quando Azcapotzalco foi invadida pelas forças da tripla aliança (Texcoco, Tlacopan e Tenochtitlan), a qual viria a formar o Império Asteca.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Popol Vuh

Também conhecido como Livro do Conselho dos povos maias* da Guatemala. Trata-se da maior obra da literatura maia que chegou aos nossos dias. Tive oportunidade de baixá-lo de um site há cerca de dois anos e até hoje não pude lê-lo completamente. Divide-se em quatro partes, das quais a principal narra a criação do mundo segundo a cosmogonia maia. O livro conta que originalmente os seres humanos eram dotados de uma inteligência equiparável à dos deuses; tinham super visão, podendo inclusive enxergar no escuro, dentre outras habilidades. Reza a lenda que os deuses, temerosos que os homens tomassem seus lugares, sopraram em seus olhos, privando-os de suas prodigiosas habilidades e reduzindo-lhes a inteligência. Até aí tudo bem. O livro me chamara atenção, pois sou um grande admirador das civilizações mesoamericanas, mas o que realmente me atraiu foi o que se diz no prefácio. O livro era usado pela nobreza maia como instrumento de conexão com os deuses, podendo trazer de volta a quem o lesse os antigos poderes de nossos ancestrais. O Popol Vuh é mais do que um livro, é um instrumento interdimensional. Ora, o leitor deve estar se perguntando, incrédulo, porquê então esses poderes não são mais alcançados? Há muitas teorias a respeito. A verdade é que o Popol Vuh que chegou até nós está muito longe de ser o original. Essa versão foi feita em alfabeto latino, da época da invasão espanhola. Supõe-se que as faculdades sobrenaturais do livro têm sua chave na antiga escrita logográfica dos maias.

Verdade ou não, toda essa história narrada no prefácio do livro me fascinou de tal forma que imediatamente quis começar a lê-lo. Bons em marketing esses antigos maias, hein? A verdade é que esse livro mudou minha forma de encarar livros. Antes, via o universo literário como um mundo de informações registradas graficamente. Nada que pudesse mudar as habilidades psíquico-mentais ou físicas do leitor. Lia um livro como se o ouvisse de alguém, e armazenava as informações. Não achava que elas pudessem me dar super poderes ou algo assim.

Desde pequeno tenho esse estranho interesse em civilizações pré-colombianas. Com o advento da Internet, pude enfim ampliar minhas fontes de pesquisa, sair da salinha da Biblioteca da escola. Foi assim que encontrei esse livro, pesquisando solitariamente. O processo de leitura foi bastante complicado, pois tinha que ler o livro no computador (imprimir sairia muito caro) e ainda por cima em inglês. Mas o maior problema era realmente não tê-lo impresso.

O Popol Vuh também me mostrou como um único livro pode ser posteriormente o único ou um dos únicos registros sobre uma cultura extinta. Lendas à parte, o Popol Vuh é um grande registro cronológico da grandeza da cultura de um povo esquecido. É como se tudo o que se pudesse saber sobre a cultura brasileira se encerrasse em um único livro, quiçá Memórias Póstumas de Brás Cubas, ou (pasmem) Viva o Povo Brasileiro. Hoje, graças ao referido livro, enxergo todos os outros com mais carinho, pois eles podem sim mudar nossa forma de pensar e quem sabe, um dia ser tudo o que resta de determinada cultura, como a nossa.
















(Sonhei com essa ilustração antes mesmo de vê-la.)


* - Ao contrário do que muitos pensam, os maias não eram um único povo, tampouco formavam um império (embora houve tentativas, principalmente da parte das cidades de Mayapan e Calakmul). Eles se organizavam em cidades-estado, grande parte delas formadas por povos distintos, embora todos eles tivessem uma certa unidade cultural, como idioma, religião, etc. Ao povo Maia Quiche é atribuída a criação do Popol Vuh.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Sentido

Contar-lhes-hei uma estória que começa com um sujeito quase normal, exceto pelo fato de que ele não podia ficar exposto ao Céu, ou este o sugaria.


Um dia ele quis saber o que aconteceria se o Céu o sugasse, queria ver a Terra lá de cima.


Daí ele propositalmente se expôs ao Céu, e este o sugou de imediato, levando-o às alturas.


Ele sentia cada vez mais frio e o ar ficava cada vez mais rarefeito.


Aí ele morreu.


É isso.


A vida não faz sentido.


quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Kamikaze

Domingo, 24/02/08, 07:30. Saí do trabalho. Na época eu trabalhava de madrugada e sequer tinha direito a intervalo. E nem era por que tinha muita coisa pra fazer, mas sim porque meu chefe era um tremendo de um carrasco. Ainda bateríamos testa muitas vezes até ele nos deixar tirar um intervalozinho. Exausto, após mais uma noite sem dormir, fui para o ponto de ônibus sem nem sequer saber para onde eu ia. Meu corpo só pedia cama, mas eu queria porque queria ir pra porra do rappel, lá nos cafundós da Ilha de Itaparica, onde o pessoal do meu grupo estava rappelando. Na época eu nem pensei nisso, mas depois constatei que a distância de Stella Maris até lá era de uns 75km. Pra você ver o esparro onde eu estava me metendo. Pensei “o primeiro Campo Grande que vier aí eu pego e vou pra casa!”, mas eis que o que me veio foi um ônibus pra Estação Mussurunga (R2), que era justamente o que eu precisaria para ir pro Terminal Marítimo pegar a barcaça, digo, o ferry-boat em direção à Ilha. Parece que eu realmente tinha que ir pra aquela joça. Ou não. Não fosse tão teimoso era só esperar um pouquinho mais até chegar o Campo Grande. Putz.

08:00. Após um breve cochilo no ônibus – contra a minha vontade – acordei na base da porrada da barra de ferro do assento à minha frente batendo na minha testa (ou o contrário?) já na hora em que chegávamos à estação. Lá, cambaleando de sono, rastejei até o ponto de Ribeira – São Joaquim, rumo ao Terminal Marítimo de São Joaquim (coincidência, não!?). Cheguei lá por volta de 08:30, comprei uma passagem de Ferry-Boat, o qual só partiria dali a uma hora. Fiquei pensando “pqp, ainda tenho uma hora, tô pertinho do centro, ainda dá pra voltar atrás e ir bater aquele ronco lá em casa!”, mas não, a passagem já estava comprada, eu não ia dar R$ 4,50 de mão beijada pra TWB nem fudendo. E também eu já tinha ido longe demais para desistir. Durante a hora que esperei, li um volume de Éden que eu havia comprado na noite anterior, antes de ir pro trabalho. Enfim chegou o bicho-preguiça dos mares baianos, o Ferry.

11:30. Cheguei a Bom Despacho, Ilha de Itaparica. Dos 10 reais que eu tinha inicialmente, já tinha gastado R$ 2,00 de ônibus para a Estação, mais R$ 4,50 do Ferry. Precisava tomar uma van até o outro lado da Ilha, a 30km de distância. Achei uma por R$ 4,00, ou seja, eu ainda ia ficar devendo. Barganhei com o motorista, falando que eu nem ia até o fim-de-linha, que eu nem sabia onde era, mesmo assim o sacana ainda fazia questão dos cinqüenta centavos, falando que não importava nem se eu descesse a meio metro de distância. Enfim eu consegui botar os cinqüenta na pendura. Viajando os 30km de estrada, ilha adentro, lembrei-me de quando eu percorri aquela mesma distância pela primeira vez, a pé, levando quase 7 horas com o grupo. De van as 7 horas viraram 20 minutos, quando pedi para o motorista parar, para espanto de todos, bem no meio da ponte do funil, que liga a ilha ao continente. O motorista achou que eu tava de sacanagem. Parar ali no meio do nada! Mas dava pra ver pela janela uma galerinha com a mesma camisa que eu, fazendo rappel. Ele parou pra lá do meio da ponte, onde desci, feliz da vida por ver o grupo. Caminhei alguns metros e gritei a plenos pulmões “FORÇA!!!”. Enfim encontrava-os, o meu grupo de rappel, o Força Vertical.

Ou eu estava mal de fôlego ou eles estavam surdos, porque quase ninguém percebeu minha chegada, daí eu entendi o porquê: um dos membros do grupo estava em pleno pêndulo do primeiro kamikaze (trata-se de um pêndulo resultante de um salto do lado oposto da ponte onde está a via) do nosso grupo naquela ponte, o que por muito tempo acreditava-se impossível devido a suas condições estruturais. Após esse momento, começaram a notar minha chegada, ainda sem dar muita importância. O líder do grupo foi o único que me deu boas-vindas. Os outros a custo falaram comigo, apáticos. O próprio colega que deu o kamikaze, ao subir de volta à ponte, encostou-se do meu lado e nem me percebeu. Só falou comigo porque falei com ele.

Começou a bater aquela tristeza. Merda! Eu, ferrado após mais uma de tantas noites de trabalho sem dormir nem no intervalo, cruzei mais de 70km para chegar lá, atravessando terra e mar, gastando toda a (pouquíssima) grana que eu tinha, pra no final das contas chegar lá e me dar conta de que eu não era bem-vindo! Veio a frustração. Aquela recepção calorosa que nem geladeira da Skol realmente me botou pra baixo. E pensar que poderia estar em casa, na minha caminha, no sétimo sono, mesmo de dia, tendo que vendar os olhos por causa da claridade! Deu-me uma vontade de sumir. Senti raiva, senti tristeza, fiquei desolado, ainda mais por saber que não havia porquê me tratarem daquela forma. Eu era o que mais trabalhava pro grupo. Eu estava sempre onde o grupo estava, era o primeiro a chegar e o último a sair. Carregava quilos de equipamentos, ancorava as vias de descida, trabalhava na instrução, abordagem e segurança; desancorava tudo no final, nadava os cabos, por vezes sozinho. Mas ninguém se importava. Poucos me ajudavam. Não que eu precisasse de ajuda. Eu faria todo o trabalho sorrindo, mas por um grupo de verdade, que merecesse meu empenho. No fim das contas, nada do que eu fazia importava ao grupo. Davam mais importância a quem era engraçado, a quem contava piadas ou fazia palhaçadas no barzinho após as manobras. Em poucos minutos minha empolgação inicial, ao chegar à ponte, se esvaiu. Perdi a vontade de fazer rappel. Fiquei silencioso, pensativo.

Eis que uma colega perguntou ao líder se ela poderia dar um kamikaze também, e o líder consentiu, com uma condição prévia: que ela fizesse um bloqueio – técnica necessária para execução do kamikaze. Se ela tivesse força e habilidade suficientes para tal, poderia ir em frente. Ela tentou, mas não conseguiu nem passar da primeira trava (o bloqueio consiste de três travas feitas no cabo). Ao vê-la tentando sem sucesso executar uma manobra que, ao meu ver, era tão simples, e ainda assim querer executar um kamikaze naquela ponte, senti algo como um misto de cólera e ansiedade, misturados com tudo o que eu já estava sentindo. Quando me dei conta, eu já estava de cadeirinha, colocando as luvas e o equipamento. Pedi abordagem e desci, a primeira para testar a cadeirinha e a segunda para executar o bloqueio, o que fiz sem nenhum problema. Em seguida, pedi permissão do líder para executar um kamikaze, o que ele consentiu.

Parecia que todos aqueles sentimentos negativos que me haviam tomado iam se dissipando diante da idéia de executar um kamikaze naquela ponte. Basicamente o processo é o seguinte: Fizemos uma terceira via, de backup, do lado oposto de uma das vias de descida. Com o auxílio do segurança, “pescamos” a via oposta; desci na via de backup com dois prusiks, e um qp (mosquetão + freio 8) extra, usando um dos prusiks em conjunto com o qp, para bloquear no local de clipagem. Feito isso, me clipei com o qp extra à via oposta, que fora pescada previamente, tesei com o equipamento e bloqueei. Em seguida, puxei manualmente o cabo para fora do qp com o qual eu havia descido, ficando atado apenas pelo prusik. Atei o outro prusik à via, e com o pé, o usei para folgar e me soltar do prusik de cima. Uma vez solto do prusik de cima, agarrei-me a uma barra de ferro da estrutura da ponte, e tirei o meu pé do prusik de baixo. Pronto. Eu estava preso à ponte apenas pela força dos meus braços. Em seguida restou-me apenas contar de um até três e gritar: “Força!”, e o coro respondeu: “Vertical!”. Soltei a barra e me empurrei pra trás, caindo no vazio.

Por um segundo senti que ia perder minha consciência. A visão quase falhou, registrando a minha queda em direção ao espelho d’água. Em seguida, um solavanco me ergueu a mais de 15 metros de altura, quando, ao perceber que eu ainda estava vivo, minha consciência voltou. Outra visão se revelava: o lindo cenário do mar ao meu redor, entre ilha e continente, passando pela profundidade dos pilares internos da ponte, um ao lado do outro, um dentro do outro, formando um túnel imenso que fitava o meu pêndulo. Gritei. Gritei muito! Primeiro de pavor, e depois de alegria. Ouvia os meus colegas gritarem junto comigo. Tudo mudou. Tudo mudou dentro de mim. Pareceu uma eternidade até o pêndulo ir enfraquecendo e eu descer, já na maré alta. Não me lembro de ter me sentido tão exultante em algum momento anterior da minha existência. Fui nadando até onde meus colegas estavam me assistindo. Muitos me parabenizaram, outros ficaram indiferentes. Para mim não importava, dada à alegria que eu sentia, não só pela manobra, mas por ter triunfado sobre toda a tristeza e frustração que eu senti. Gargalhei. Gargalhei diante de tudo e todos que achavam capazes de me oprimir. Eu fui mais forte naquele dia, e sabia que a tristeza e a frustração me tocariam de novo algum dia, mas naquele dia eu aprendi uma lição a qual eu nunca mais me esqueceria. Uma luz tão ofuscante da qual as trevas nunca mais se recuperariam. Fiquei feliz pelo resto do dia, com o sentimento de que me despedia temporariamente do rappel com chave de ouro, afinal, a partir do dia seguinte eu entraria numa vida de cão, estudando de dia e trabalhando de madrugada. Mas isso aí já é outra estória.

Como uma imagem vale mais que mil palavras, tá aí o vídeo:


Essa é uma visão do vão da ponte:

sábado, 13 de setembro de 2008

O momento eterno

Eis que acordo num lugar estranho, rodeado de máquinas, não fosse pela luz de seus leds estaria no breu. Seus ruídos quase harmônicos pareciam me ninar. Olhei ao redor. Eu estava deitado no chão, e ao meu lado estavam meus pertences. Entre eles, havia um broche com o meu nome. Eu estava com uma roupa social, bem vestido. Havia uma chave no meu bolso, atada por uma fita do Senhor do Bonfim. Me refiz, abri a porta e desci uma escada espiral. Meu chefe parecia estar cochilando no back-office. Olhei o relógio, estava parado em 4 horas da manhã. Pensei que estivesse com defeito, mas não. O mesmo acontecera a todos os outros relógios. Olhei ao redor e não havia ninguém. Tentei acordar meu chefe para relatá-lo sobre o fato, em vão. Passei um rádio para a segurança, mas ninguém respondia. O telefone estava mudo. Saltei o balcão do front e perambulei a procura de alguém. Eis que havia alguém no lobby-bar. Ainda que fosse estranho haver algum garçom àquela hora da madrugada, me tranqüilizou vê-lo. Aproximei-me e vi que ele não era um garçom. Ele estava vestido igual a mim. Minha visão ainda estava um pouco turva após o sono, e tive que me aproximar mais para ver quem era. Não tive coragem de dizer nada antes disso. Ele estava de costas, usando a máquina de café, calmamente. Cheguei ao balcão e esbocei cumprimentá-lo. Ao ouvir-me, virou-se para mim, com duas xícaras de capuccino sobre uma bandeja. Ele era eu mesmo.

Não podia acreditar no que os meus olhos viam. Impossível! Só podia ser um sonho, um pesadelo. Isso! Eu ainda estava dormindo! Na verdade eu ainda não tinha acordado! Atônito, dei um passo atrás, suava frio e meu coração batia muito forte. Calmamente, ele me olhou e me disse “Acalme-se. Nem eu nem você somos reais. Você é seu corpo de sonho. Nosso corpo físico está longe daqui”. Tateei o balcão de granito, senti seu frio, e isso de certa forma me tranqüilizou. Meus sentidos pareciam estar apurados. Minha reação foi manter a sanidade, buscar a razão. Respirei fundo e olhei novamente para aquele homem, exatamente igual a mim. Perguntei-lhe: “Então isso é um sonho?” E ele me respondeu: “Você veio até aqui através de um sonho, mas é mais do que isso. Aqui é o passado – você foi demitido hoje às 06:10 da manhã, e eu fiquei aqui. Eu sou a memória de quando você trabalhava aqui”. Então, pedi-lhe para me provar o que ele estava falando. De súbito ele me ofereceu uma xícara de capuccino falando em um código que eu criei quando tinha 14 anos, e que só eu sabia. Comecei a entender o que se passava, e aceitei o capuccino, enquanto conversava comigo mesmo. Ele, ou eu, sei lá, me disse que queria ter me oferecido o capuccino antes, mas aí é que eu teria desmaiado de susto. Me explicou que ele ficou aprisionado lá desde a noite da minha demissão (eu trabalhava de madrugada) e que todos estavam inertes porque o tempo parou para eles. Mas meu Eu onírico pôde reativar meu Eu passado. Na verdade, estávamos conectados mentalmente, e isso era a essência que nos fazia um ser único, e era por isso que ele tinha consciência do que se passava, e sabia da demissão que ainda iria ocorrer.

Aquela dimensão onde estávamos era uma interseção entre o mundo onírico e o passado, de forma que tudo o que era passado se conservava ali, porém estático, e minha visita ali só me fora possível através de um sonho. Assim, a noite era eterna, e a capacidade da máquina de capuccino também! Eu não podia alterar o passado, mas podia vivê-lo a meu bel prazer.
Também descobri que meu Eu passado estava aprisionado no lugar onde eu estava naquele momento passado - o resort onde eu trabalhava. O sonho tornava possível aquele mundo intangível. Fui comigo mesmo para a sala de jogos, foi tão divertido jogar no fliperama comigo mesmo! O chato é que eu vencia sempre, ganhando ou perdendo...

Fiquei curioso para explorar a parte externa, ir pra rua, ver se encontrava mais alguém. Meu Eu passado não pôde sair comigo, porque a memória que o constituía limitava-se apenas ao resort. Concentrei-me no meu corpo onírico, e para o espanto do meu Eu passado, voei. Imaginei que em sonho eu poderia voar, e assim poderia fazê-lo, distanciando-me do mundo material passado e concentrando-me no meu Eu onírico. Elevei-me a muitos metros de altura e contemplei a cidade do alto. Senti uma paz infinita invadir meu peito, diante daquela metrópole iluminada e silenciosa. O mundo parecia morto, sem o movimento temporal, mas eu era a vida pura. Voei até a minha casa, e vi meu pai dormindo. Vi sobre minha cama a venda, feita com um lençol amarrado, que eu usava todas as manhãs para cobrir meus olhos, e assim poder dormir de dia. Ao tocá-la, chorei. As lágrimas do meu corpo onírico eram luminosas e etéreas, evaporavam-se rapidamente, faziam-me sorrir e assim parei de chorar. Senti que havia muito mais coisas para explorar, uma vez que eu podia voar para onde quisesse. Então voei para Jacobina. 6 horas de viagem terrestre tornaram-se 6 minutos de um vôo onírico. Era seu aniversário, e agora eu podia voltar no tempo e ainda atravessar toda aquela distância para revê-la!

A serra que cerca a cidade parecia pequena, vista do alto, e no inverno de junho os rios D’ouro e Itapicurú confluíam bem mais volumosos do que quando os vi pela primeira vez, meses mais tarde. Ainda havia alguns fogos de São João, cujas explosões inertes em pleno ar formavam esculturas ígneas coloridas. Parecia estar fazendo frio, mas tudo era tão excitante que eu não era capaz de senti-lo. Finalmente achei a casa dela. Pousei na varanda e atravessei as paredes. Não havia ninguém. Seria fácil demais... Em meio àquela rotina consumida totalmente pelo trabalho e pela faculdade, não pudera manter contato com ela, e assim saber pra onde ela fora. Imaginei então que deveria ter voltado para sua casa, justo de onde eu vim - Salvador! De nada adiantaria ficar triste, e afinal de contas, para quem pôde voltar no tempo, pará-lo e voar 300km em 6 minutos, nada era impossível. Assim, fiz a viagem de volta, tão rápido que me sentia parte do próprio Céu, e a velocidade fluia por todo o meu corpo. Sobrevoei a capital novamente, por sobre as nuvens tudo parecia tão pequeno... Era lá. Mergulhei em direção à sua casa, atravessei as paredes como se jamais tivessem existido. Lá estava ela adormecida em seu leito, bela como eu havia imaginado. Não, muito mais. Foi aí o ápice do momento eterno, quando me perdi em sua beleza, perdendo a noção de tudo enquanto contemplava-a. Afaguei seus cabelos, tão negros e brilhantes. Senti o calor de seu corpo, na medida em que me aproximava. Toquei seus lábios com os meus. Dois mundos, o etéreo e o físico se encontravam. Não se distinguia sonho de realidade, presente, passado e futuro. De repente, acordei num lugar estranho, rodeado de máquinas, não fosse pela luz de seus leds estaria no breu. Seus ruídos quase harmônicos pareciam me ninar...

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Mundo verbal x não-verbal

As línguas humanas são convenções desenvolvidas entre seres humanos a cerca de tudo que os rodeia. Chamamos o Céu de “Céu” porque alguém conveio que assim era melhor chamá-lo, enquanto outros acharam que o Céu tinha cara de “Sky”, ou “Nebo”. Assim surgiram as línguas – traduções verbais do mundo não-verbal ao nosso redor, quando duas ou mais pessoas concordaram em chamar algo disso ou daquilo. O cenário nos conta. As paisagens sabem de tudo o que precisamos, só temos que saber decifrá-las.
Hoje acordei com um estrondo que me dizia “Bom dia”.



Verbal vs. Non-verbal world

Human languages are conventions developped among human beings about everything around them. We call Sky “Sky” because someone thought to call it so, meanwhile others thought it looked like “Céu” or “Nebo”. So the languages were born – verbal translations from the non-verbal world around us, when two or more people agreed on calling something like this or like that. The settings tell us. The landscape know everything we need, we just have to know how to decode them.
Today I woke up with a boom saying “Good morning” to me.